10. Tempestade

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As grandes tempestades não duram muito, assim como as grandes alegrias não são eternas.
Textos Judaicos.

- Nossa! - exclamei surpresa quando Robert Castro retornou.
- O que foi? - ele estava sorrindo.
- Você tem uma bicicleta? - indignei-me.
- Você também tem uma bicicleta! - rebateu ele, segurando o veiculo cromado.
- Sim, e ela é meu único meio de locomoção, mas você tem um carro. Por que precisaria de uma bicicleta?
- Pedalar não é uma exclusividade sua, sabia?
- Tudo bem! - eu ri, fingindo ainda mais perplexidade quando ele subiu na bicicleta.
Ele disparou para a rua, fugindo de meu deboche.
- Vamos!
Eu o segui, ainda rindo, e, só para me exibir um pouquinho, pedalei o mais rápido que pude.
Senti o vento fresco desarrumar meus cabelos, tocando delicadamente meu rosto. Inspirei o ar puro que vinha das árvores que ladeavam a estrada asfaltada.
Sentia-me livre, quase como me sentia quando estava com Sol, cavalgando sem rumo, sem pressa, a toda velocidade.
Robert pedalava ao meu lado, acompanhando meu ritmo sem nenhum esforço aparente, às vezes me lançava o seu meio sorriso mágico, fazendo minha cabeça girar a mil por hora. O vento desalinhava seus cabelos cor de mel e acariciava também seu rosto todo. Lindo demais.
Sua expressão era de enorme prazer, como se ele pudesse tocar a liberdade, brincar com ela, como uma criança sem medo do que pode lhe acontecer.
O sol irradiava seus raios da tarde por todo o céu, deixando o véu acima de nós numa mistura deslumbrante de tons avermelhados, rosados, brancos e azuis.
E eu não conseguia parar de olhar para o garoto ao me lado.
Robert fechou os olhos, inclinando a cabeça para trás, e abriu os braços, banhando-se com a luz, como se quisesse abraçar o sol. Fiquei hipnotizada por sua beleza que simplesmente me esqueci de manter a velocidade, mas isso não me importava, era bom poder contemplá-lo enquanto ele pedalava a minha frente.
As casas a nossa volta continuaram incríveis quando entramos numa rua com a placa Oswaldo Seabra na esquina, e Robert me informou que alí por perto ficava o mirante do Pedrão com uma vista muito bonita.
__ E mais adiante fica a UPP do Morro Dona Marta. - disse, ainda pedalando a minha frente.
__ É pra lá que estamos indo? - perguntei, agora tentando alcançá-lo.
__ Claro que não - ele riu da minha pergunta - vamos virar aqui!
Robert deixou a estrada de asfalto e entrou em uma trilha no meio das árvores, uma
estradinha dificilmente identificável por quem passava de carro por aquela via. Era uma trilha estreita, mas bastante plana, não era difícil pedalar ali.
Seguimos por pelo menos cinqüenta metros pelo caminho de terra, antes de sairmos em uma espécie de bosque no final da trilha. Descemos das bicicletas e começamos a empurrá-las bosque adentro, até chegarmos a um prodigioso Ipê amarelo completamente em floração, que tinha um balanço de cordas e pneus amarrado a um de seus galhos fortes.
Nesta área as árvores eram mais esparsas, embora grandes o suficiente para encobrir boa parte do céu.
- O que acha? - perguntou Robert, encostando sua bicicleta em uma árvore próxima.
Eu o imitei.
- Gosto de vir aqui. - ele disse, observando o espaço a nossa volta; uma expressiva
vegetação de mata atlântica.
__Você construiu isso? - questionei enquanto tocava a corda do balanço com as pontas dos
dedos.
Robert balançou a cabeça.
__ Quando descobri este lugar ele já estava aí, apenas fiz alguns reparos, substituindo boa parte das cordas antigas por cordas em melhor estado.
Sentei-me meio insegura no balanço, as cordas em "melhor estado", que ele dizia ter
colocado, na verdade não pareciam em tão bom estado assim.
__ É seguro? - minha pergunta revelava minha insegurança.
Ele sorriu.
__ Pode apostar! - garantiu.
Consegui relaxar um pouquinho, mas não tive coragem para me balançar, permanecer sentada parecia suficiente para mim.
__ Gostei desse lugar! - eu disse, fingindo que todo meu entusiasmo vinha da paisagem verdejante carregada de um inconfundível cheiro de clorofila, e não por estar alí com aquele garoto.
__ Também gosto, é um lugar onde ninguém me encontra - ele ainda estava sorrindo - É o meu lugar secreto. - completou com aquela voz rouca que me enlouquecia sempre.
- Se é secreto, por que me trouxe aqui, então? - questionei involuntariamente.
Havia algo em mim, algo pulsando em meu coração... borboletas em meu estômago...
- Porque talvez, eu queira ser encontrado um dia! - ele sorriu consigo mesmo ao dizer essas palavras.
Minha respiração vacilou.
Não. O que eu sentia era mais que borboletas no estômago. Era mais forte, muito mais
poderoso. Eram cavalos selvagens, corcéis galopando a toda velocidade dentro de mim.
Robert encarava-me, encostado no tronco do Ipê. E pareceu-me de repente que aquela
confissão era quase um pedido de "socorro". Como se ele desejasse ter com quem conversar, com quem desabafar. Como se desejasse alguém com quem dividir seus medos e desejos, alguém pra compartilhar seus segredos e frustrações. Como se ansiasse por alguém que o encontrasse de verdade, que encontrasse sua alma. Tá legal, isso era o que eu queria que ele desejasse.
Eu o observei por um instante e percebi que, apesar de ele ter aquele rosto incrivelmente
bonito, apesar de ser tentadoramente charmoso de uma maneira que até mesmo os astros do cinema precisam treinar quase uma vida inteira para chegar perto de alcançar, apesar de ele parecer sempre confiante e auto suficiente, apesar de tudo isso, Robert Castro realmente era apenas um
garoto de dezenove anos meio solitário.
- Você me acha estranho, Isi? - sua pergunta me pegou desprevenida.
- Por que está me perguntando isso?
- Acha ou não? - insistiu enigmático.
- Deveria achar? - murmurei, insegura de minha própria resposta.
Ele deu de ombros.
- Aposto que te disseram que sou traumatizado! - ele abanou a cabeça, sorrindo abertamente.
Sustentei seu olhar.
- E você é?
Robert parou de rir.
- Você acha que sou? - porque não respondíamos a nenhuma de nossas perguntas? Até quando ficaríamos nesse joguinho de "passa e repassa"?
Eu estava louca para mergulhar mais fundo em seu mundo, saber coisas sobre ele que
ninguém mais sabia, estreitar nossa relação. Ser a amiga.
- Importa-se de me contar o que houve? - perguntei meio insegura.
Se ele fosse capaz de se abrir comigo, de me contar seu passado, então eu estaria no rumo certo.
Robert cruzou os braços na frente do corpo e ficou a olhar as árvores que balançavam com a brisa, enquanto eu esperava ansiosa que ele começasse a me contar tudo sobre sua vida. Mas acho que se dependesse dele eu continuaria a nadar pela superfície de seu mundo secreto.
- Já sabe toda história, não sabe? - foi o que ele disse, ainda com os olhos nas arvores.
Fiquei decepcionada. Mas estava disposta a ser insistente.
- Sei apenas uma versão batida no liquidificador, bem resumida e sem nenhum detalhe. Gostaria da versão em primeira mão.
- Não existe versão em primeira mão. - ele me olhou, sério demais.
Droga! Me arrependi imediatamente da insistência.
Eu jamais devia esquecer que sempre havia o risco de eu estar sendo terrivelmente
desagradável. Sou tão ridícula. Só por que ele falava comigo não queria dizer que desejava minha amizade.
- Tudo bem, me desculpe. Acho que não quer falar sobre isso, não é? - murmurei, tentando sorrir para esconder o constrangimento e a decepção.
- Não, não é isso. - ele ainda me encarava, mas sua expressão era mais suave. - Apenas... não quero ter que mentir para você.
- E por que você mentiria? - minha voz baixara para um sussurro, quase como se eu estivesse com medo de sua resposta.
- Porque nem tudo é o que parece, Isi! - disse ele profundamente, o rosto vincado por uma expressão quase sombria, mas no segundo seguinte sua feição tornou-se descontraída. - Bom, mas agora fiquei curioso em saber sua história em
primeira mão. - ele estava sorrindo. Como conseguia mudar de expressão com tanta
facilidade?
Eu não tinha muito o que dizer sobre minha vida, ou talvez também não quisesse ter que
mentir e dizer que tinha uma historia normal como a de qualquer outra pessoa, porque isso não era bem verdade.
- Acho que também já sabe tudo! - retruquei dando de ombros.
- Seus pais estão se divorciando, certo? - conferiu.
- Certo.
- Tá legal, ainda não consigo enxergar a razão para eles te mandarem para cá. Muitos outros pais se separam sem mandarem os filhos para outro estado.
- Eis a característica principal dos meus pais: eles não são como os outros pais.
- E? - insistiu.
Robert era muito mais insistente do que eu, não era para ele estar conseguindo tirar as coisas de mim, mas eu simplesmente não conseguia deixar de responder suas perguntas.
- E que me mandaram para outro estado para terem a liberdade de gritarem ofensas e alguns palavrões sem correrem o risco de serem os responsáveis por me deixar traumatizada.
- Por isso te mandaram para o Rio de janeiro? - indagou, numa dúvida relutante.
Eu sabia que minha resposta, embora verdadeira, não havia sido convincente. Era uma resposta incompleta e, quando dei por mim, lá estava eu, fazendo questão de completá-la.
- Sim, por isso me mandaram pra o Rio, e também porque, ao que parece, nenhum dos dois quer ter minha guarda após o divórcio. Quem quer carregar uma adolescente a tiracolo? - tentei rir ao dizer isso, mas foi impossível.
Robert manteve os olhos em mim, tão doces, que de alguma maneira maluca ele não precisou me perguntar mais nada, eu estava falando... me abrindo, quase me confessando.
- Bom, minha mãe não tem muito jeito pra conversar e nem muita paciência. Meu pai é meio caladão e não tem nenhum tato pra lidar com situações cotidianas, mas eles não são pais ruins. - eu disse isso tentando convencer a mim mesma - Os dois realmente não pretendiam ter mais
do que um filho, mas um dia, inesperadamente, minha mãe descobriu que estava grávida de novo... Acho que foi aí que o casamento deles começou a caminhar para fim. - dei de ombros, tentando parecer indiferente ao tema da nossa conversa.
Lembrei-me de que quando fiquei sabendo da decisão do divórcio quase implorei para que não fizessem aquilo comigo. Mas era mais do que minha felicidade que estava em jogo. Era a felicidade dos meus pais também. Há anos eles vinham saindo de uma crise e afundando em outra, há anos eu era obrigada a fingir que não percebia quando eles não estavam se falando, há anos nós tentávamos enganar uns aos outros, fingindo que estava tudo bem. Mas isso era
uma mentira. E Sara me fez entender, durante uma de nossas infinitas conversas, que ninguém era feliz na minha casa, e ninguém seria feliz enquanto nos obrigássemos a viver juntos. "O
amor não obriga, Ísi. O amor liberta."
__ Lena é totalmente independente, tem a própria vida, mas eu... eu seria apenas um estorvo para quem perdesse no tribunal e tivesse que cuidar de mim. Acho que meus pais não queriam arriscar e o Rio era a saída perfeita. Pelo menos posso dizer que vi os dois concordarem em alguma coisa nessa vida. - resmunguei, tentando não me lembrar que às vezes meus pais davam a
entender que a culpa do fim do casamento era minha. Afinal, tudo ia muito bem... até eu aparecer.
Fiquei em silêncio, um silêncio indecisamente necessário. Nunca tinha falado tanto sobre meus pais com outra pessoa que não fosse Sara, ou Lena. Era estranho estar falando deles
agora, mas era confortável também.
Robert deu a volta no balanço e sem dizer uma palavra começou a me balançar
delicadamente. Levantei os pés do chão e deixei que ele me empurrasse com mais força.
Fechei os olhos, sentindo o vento contra todo o meu corpo.
- Como você acha que deve ser voar? - perguntei.
Robert fez silêncio por um momento, enquanto me balançava cada vez mais forte, depois começou a falar lentamente.
- Deve ser como estar inteiramente livre, inteiramente ligado com todo o universo... o vento soprando, a imensidão do céu mais próxima de você, um universo sem fim para percorrer... a melhor de todas as sensações! - havia tanta convicção em suas palavras que cheguei a acreditar que estava mesmo voando enquanto o ouvia descrever cada sensação.
- Eu queria ter asas, - confessei automaticamente - como um pássaro, uma borboleta, ou...
- Ou um anjo! - completou ele.
Eu ri com a possibilidade.
- Você acha que os anjos têm asas? - perguntei, ainda de olhos fechados. - Acha que são parecidos com as figuras gordinhas, com asinhas e trombetas, que vemos pintadas por aí?
- Talvez. Quem pode nos dizer?
- Eu não acredito muito nisso! - confessei.
- Em anjos? - indagou ele. Senti qualquer coisa de irregular em sua voz.
- Não, é claro que acredito em anjos, - tive a impressão de ouvi-lo suspirar - mas não
acredito que sejam como criancinhas fofas, com asinhas e bochechas rosadas! - confessei.
- E no que você acredita então? - ele quis saber.
Suspirei. No que eu acreditava?
- Humm, não sei. Nem consigo imaginar como seria um anjo de verdade. - murmurei, abrindo os olhos e inclinando o corpo todo para trás.
Eu podia ver fragmentos de céu que apareciam entre as folhas e galhos do Ipê, e podia ver também o rosto de Robert Castro quando o balanço pendia para trás.
Ele estava sorrindo, enquanto continuava a me balançar. E era tão lindo que parecia até
pecado encará-lo da maneira como eu o estava encarando.
- Bom, não sei se anjos precisam de asas para voar... mas acho que eu precisaria! -
gritei, saltando do balanço ainda em movimento, projetando-me a quase dois metros à frente, num voo curto e mal calculado. Tudo para fugir daquele rosto tentador.
Caí na grama com mais força do que pretendia e Robert correu até mim, para se certificar de que estava tudo bem.
- Você se machucou? - perguntou, sentando no chão ao meu lado, e tomando minhas mãos entres as suas. Estavam vermelhas, porque eu as havia usado como freio para minha queda-quase-voo. - Você é maluca, sabia disso? - destacou ele.
Eu ri do espanto em sua voz.
- Estou bem. Eu disse que precisaria de asas...
Ele riu comigo e com cuidado ajeitou meu cabelo. Fiquei imóvel. Seus dedos alinharam
gentilmente os fios desarrumados, depois passearam pelo meu rosto retirando com delicadeza todo vestígio de grama.
Eu estava voando novamente, sem asas.
Joguei o corpo para trás, deitando na grama, fugindo descaradamente de seu toque - era mais do que eu estava preparada para suportar.
Robert riu com a falta de sutileza de meu afastamento e deitou-se na grama ao meu lado.
Nossos corpos estendidos em extremidades opostas, e nossos rostos lado a lado. Evitei olhar para ele. Fitar o céu era muito mais seguro para meu coração naquele momento.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now