3. Perdida e Salva (II parte)

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O garoto estava longe o bastante para não perceber que eu o olhava, e parecia tão à vontade alí, recostado sob a sombra de uma árvore. Gravei aquela imagem em minha mente, como uma fotografia: pernas cruzadas, cabeça baixa - o que, infelizmente, não me permitia ver o seu rosto -, camiseta branca, calça jeans, mochila verde musgo ao seu lado no chão, um caderno e uma caneta nas mãos, rabiscando alguma coisa que, juro, me corroeu as entranhas a curiodidade de saber o que era. Desejei simplesmente correr para ele, sentar-me ao seu lado e ficar alí para sempre.
Então, de repente, minha visão perdeu o foco e escureceu, mesmo com os olhos abertos não enxerguei mais nada, e senti que precisava de apoio ou não aguentaria o peso do próprio corpo. Me apoiei no braço de Marcos, e tentei me manter sã.
- Hei! - Marcos me trouxe de volta para a realidade, estalando os dedos na minha frente - O que aconteceu? Você está bem? - ele me olhava com preocupação.
Respirei fundo, tentando focalizar seu rosto.
- Eu... Estou bem! - menti, forçando um sorriso.
Marcos continuou me olhando com aquela cara de quem ainda espera alguma coisa.
- Pare de me olhar assim. - pedi - Eu já disse que estou bem.
- Ísi, você está pálida! - foi bom ouví-lo me chamar pelo meu apelido. Marcos colocou a mão direita sobre minha testa - Pálida e gelada. Tem certeza de que está bem?
- Tenho... Não foi nada, é sério, foi só uma vertigem...
- Outra vertigem? Devia procurar um médico! - aconselhou com humor e preocupação.
Revirei os olhos para ele.
- Por favor, não exagere, acho que não tenho me alimentado direito, só isso. E aqui faz tanto calor... Não estou acostumada! - forcei outro sorriso, e dessa vez consegui ser mais convincente.
- Tudo bem, - Marcos ainda me analisava, preocupado - vem comigo até a secretaria?
- Ah... se não se importa, acho que vou ficar por aqui um pouco mais... - resmunguei.
- Certo, eu não demoro! - prometeu ele, afastando-se de mim.
Voltei os olhos para debaixo da árvore, onde o garoto estava, mas, para minha total decepção, tudo o que encontrei foi um lugar vazio.
"Droga!"
Caminhei pelo extenso gramado, e por onde eu passava pescoços se viravam na minha direção, tentei não me prender muito a isso. Meus olhos se mantinham numa busca insistente e fracassada.
Nada.
O dia estava agradável ali fora, apesar do forte sol, havia uma brisa fresca reconfortante, que balançava as folhas das várias árvores espalhadas por entre os bancos. O céu era de um azul intenso e quase sem nuvens. Respirei fundo, feliz que a instituição conservasse uma boa área verde como aquela.
Descendo da copa de uma das árvores pela qual eu passava, uma borboleta voou até mim, fazendo gracinhas e firulas ao meu redor.
Ela era laranja e preta, com pintinhas brancas nas bordas das asas. Fiquei observando-a em sua saudação de boas vindas, mas em poucos instantes minha nova amiga já batia as asinhas para longe.
- Não, não vá... - sussurrei, caminhando atrás dela.
Eu a segui, incapaz de conceber a ideia de perdê-la de vista. Claro que tentei ser discreta na minha perseguição, não queria que os outros alunos tivessem motivos para me achar ainda mais estranha do que já me achavam de fato.
A borboleta voou alegremente, sem se importar em estar sendo seguido. Depois de passear por entre varias árvores, entrou pelas portas abertas do prédio quatro, seguiu pelo longo corredor de piso liso e brilhante e entrou em uma das inumeras portas que havia ali. Apressei o passo para não perdê-la de vista, e li a inscrição "Biblioteca", antes de irromper pela mesma porta que ela.
Será que sou muito nova para morrer do coração?
Acredito que sim, mas não pude deixar de sentir as oscilações em meus batimentos quando, vagando pelo ambiente a procura de minha amiga, meus olhos se depararam com a visão mais extraordinária do mundo.
Na última mesa, no canto esquerdo, longe das prateleiras de livros, estava ele, sentado gloriosamente, impassível.
Era ele, o garoto do gramado. Reconheci pela camisa branca e pela mochila verde em cima da mesa, e quase não consegui respirar quando notei, pousada com serenidade sobre a alça daquela mochila, o inseto alado que eu estava perseguindo.
A borboleta era implacável, assim que se deu conta de minha presença ali, levantou voou, escapando pelas frestas de um dos janelões atrás do garoto. Dessa vez não me importei em perseguí-la, não me importei com nada mais, por que ele mantinha os olhos fixos... em mim.
Neste instante o mundo inteiro se perdeu.
Penso que as palavras não funcionam, porque não existe um jeito fácil de descrevê-lo. Mesmo que eu usasse todos os adjetivos existentes, ainda assim não conseguiria expressar com exatidão a visão que tinha diante de mim.
Ele era... Lindo.
A visão mais linda do meu dia, da minha vida inteira, na verdade.
Os contornos de seu rosto eram totalmente marcantes, totalmente... incríveis, os lábios visivelmente irresistíveis, contrastando com o tom quase bronzeado da pele, seu cabelo era de um castanho natural incomum. E o que mais me chamou a atenção, o que de fato me desconcertou por inteira, foram os olhos. Eram, inacreditavelmente, diferentes de quaisquer olhos que eu me lembrava já ter visto na vida.
"Azuis!". Registrei mentalmente.
Mas não era o azul comum que os olhos azuis costumam ter. Era um tom... diferente.
"Quase cinza!".
E enquanto eu o encarava, totalmente esquecida de que aquilo não era um sonho, não pensei em nenhuma comparação melhor para aqueles olhos do que "um céu azul de primavera, tomado de repente por nuvens cinzas de chuva."
Esforcei-me para não tet uma síncope, quando ele insinou um breve sorriso.
Meu coração parou de bater dentro do peito, meus pensamentos deixaram de existir dentro da minha cabeça, minha respiração desapareceu junto com todo ar do mundo, e meus olhos continuaram imóveis, contemplando a imagem da perfeição.
Ele era... Perfeito.
Sim, perfeito. Eu não conseguia pensar em nenhuma outra palavra para defini-lo.
Sentia-me extasiada, porque percebi que... eu não estava viva antes daquele momento.
Senti a luz do dia em meus olhos pela primeira vez. Senti o ar a minha volta como jamais havia sentido antes. Era também a primeira vez que meus pulmões realmente recebiam oxigênio, e eu não sabia como lidar com tanto vida dentro de mim.
Era como se eu tivesse sido apresentada à revelação de um segredo. Senti minha alma debater-se com fúria e singeleza dentro de mim, como se desejasse deixar meu corpo, abandonar-me.
Não entendi o que estava acontecendo comigo. Me senti terrivelmente perdida, um abismo sob meus pés. Ficou tudo tão confuso, mas ao mesmo tempo... tão claro. Eu estava apavorada, nunca havia sentido nada parecido antes, e apesar do medo de todo aquele universo desconhecido, eu sabia que, naquele momento, eu estava sendo salva.
Aquele era o primeiro dia da minha vida.
- Pois não! - disse a bibliotecária, me tirando do transe. - Precisa de ajuda?
Encarei-a, ainda desnorteada, e ela me encarou de volta. Era uma mulher robusta, com olhos críticos, meio escondidos por detrás de seus óculos de grau. Sua testa estava vincada por uma ruga de preocupação, o cabelo era uma mistura de ex-loiro com recém grisalho, o que lhe dava um ar de desleixo, que era reforçado por sua blusa vermelha desbotada.
- Éh... Não, obrigada!
A mulher deu de ombros, e voltou os olhos para a tela do computador a sua frente.
Caminhei até uma das grandes estantes abarrotadas de livros, e não consegui evitar de dar uma olhadinha na direção da última mesa.
Ele ainda mantinha os olhos em mim.
Um rubor queimou minhas bochechas. Desviei os olhos rapidamente por um segundo, mas voltei a olhá-lo, quase que instantaneamente, só para ter certeza de que eu não estava tendo uma alucinação.
"Caramba" .
O rubor aumentou, agora meu rosto inteiro estava em chamas.
Comecei a ler os títulos dos livros, tentando me distrair. Eu sabia que ele ainda estava me olhando. Podia sentir a pressão dos olhos dele sobre mim.
Peguei um livro qualquer e me dirigi a uma das mesas. Abri numa página aleatória e comecei a ler, sem fazer ideia do que estava escrito alí.
Depois de alguns minutos fingindo concentração no livro, ergui a cabeça, só um pouquinho, e sondei o garoto.
Uma onda de êxtase e acho que... pavor, percorreu todo meu corpo.
Ele não parava de me encarar.
Senti todo meu corpo em chamas, a sensação não era mais de um simples rubor, mas de um incêndio total. Minhas mãos tremiam, meu estômago girava.
Por que ele precisava ter aqueles olhos? Tão... intensos e misteriosos, tão diferentes de tudo o que eu já tinha visto antes.
E por que ele estava me encarando daquela meneira tão indiscreta?
Aquilo era abusivo.
Continuei fitando o livro, sem nada ver. Uma irritação surgindo lentamente. Não estava me irritando com o garoto, claro, mas comigo mesma. Não me incomodava tanto que ele estivesse me encarando, me incomodava o fato de eu ser tão feaca e não conseguir sustentar seu olhar.
- Até que enfim te encontrei! - exclamou uma voz familiar às minhas costas, me assustando - O que aconteceu com "Vou ficar por aqui um pouco mais"? - perguntou Marcos, dando a volta na mesa e arrastando uma cadeira para sentar-se bem no meu campo de visão.
- O que aconteceu com "Eu não demoro"? - rebati.
Marcos encarou-me por um momento, e parecia meio tenso.
- O que foi, não conseguiu marcar suas aulas extras? - perguntei, sem entender o por quê suas mandíbulas estavam, de repente, contraídas.
- Consegui. - seus punhos estavam rijos sobre a mesa.
- Então que cara é essa? - indaguei, analisando seu mau humor.
- Fiquei... preocupado, quando voltei ao refeitório e você não estava mais lá!
Eu ri.
- Preocupado? Preocupado com o quê?
- Com você! - bufou ele, fechando ainda mais a cara - Você é nova aqui, ainda não conhece ninguém, - ele estava hesitante - não quero que se meta em... confusão! - concluiu, com uma preocupação exagerada.
Enquanto eu tentava processar as palavras de Marcos, o garoto da última mesa se levantou e passou por nós como um cometa. Só tive um milésimo de segundo para olhar nos olhos dele mais uma vez, - havia um sorriso alí? - e então ele já estava longe.
Marcos pigarreou algumas vezes, chamando minha atenção, quando continuei com o pescoço virado para a direção da porta, mesmo depois do garoto ter sumido por alí, eu tinha a esperança de que ele ainda pudesse voltar.
- O que está lendo? - Marcos tomou nas mãos o livro esquecido sobre a mesa - Humm, Copérnico? Não sabia que gostava de astronomia. - comentou, folheando distraidamente as páginas.
- Tem muita coisa sobre mim que você ainda não sabe! - murmurei, tentando soar misteriosa.
Marcos riu, sem deixar de olhar o livro.
Continuei.
- Acho astronomia uma ciência incrível. - afirmei com naturalidade. Não queria que ele descobrisse que eu não fazia a menor ideia do que se tratava aquele livro, até ele falar. - Sempre fui apaixonada pelos mistérios do céu, desde criança! - concluí, e isso era mesmo verdade. O céu sempre fora incrivelmente fascinante para mim.
A campainha do sinal tocou, avisando que tínhamos que voltar às aulas.
Marcos fez uma careta de tédio.
- Vamos, temos mais um pouco de sofrimento pela frente!
Ele me acompanhou até minha sala.
- Te vejo na saída! - disse, antes de se afastar.

Quando entrei na sala, a aula ainda não havia começado, e várias carteiras já estavam "reservadas", com as mochilas e cadernos dos outros alunos.
Encontrei uma mesa não marcada no meio da sala, e corri para ocupá-la. Fiquei alí, rabiscando em meu caderno, tentando esquecer aqueles olhos.
- Oi! - disse uma garota, sentando-se em cima da carteira ao meu lado. Seu cabelo era castanho claro, na altura dos ombros e uma franja rala lhe chegava até bem perto das sobrancelhas, que aliás, eram muito bem desenhadas pela pinça. Seus olhos negros e muito pequenos me analisavam com curiosidade.
- Oi! - respondi, tentando sorrir.
Ela havia sido a única pessoa que tinha falado comigo até aquele momento. Simpatizei-me com ela.
- Sou Beatriz Lemos! - disse, me estendendo a mão. As unhas tinham uma cobertura de esmalte perto, e no pulso ela usava uma sequência assustadora de pulseiras prateadas e coloridas.
- Heloísi Silva! - apresentei-me - Ísi!
- E então, Ísi? Fiquei sabendo que se mudou pra o Rio porque seu pais estão se divorciando. Que barra! - ela disse aquilo com tanta naturalidade que me espantou.
Um incômodo me cutucou por dentro ao constatar que aquela garota sabia coisas sobre a minha vida.
- Como "ficou sabendo"? - minha pergunta saiu apressada.
Ela riu.
- Aqui todo mundo fica sabendo de tudo! - avisou, piscando os olhindos negros para mim.
"Que ótimo!" Pensei com ironia,
- Nossa, você conseguiu mesmo irritar o Sr. Walter, chegando atrasada bem no primeiro dia. Isso não é uma coisa boa, ele não suporta atrasos. - mais um aviso - Você parecia meio apavorada, devia ter visto sua cara quando entrou na sala, - ela era a garota sentada ao meu lado na aula de matemática, lembrei-me de repente. - Sério, pensei que você fosse sair correndo quando o professor pediu que se apresentasse! - ela riu, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do século. Mas de repente o riso acabou, e seu rosto ficou atônito, paralisado, não era a mesma garota de um segundo atrás.
Seus olhos estavam fixos na direção da porta da sala, imediatamente me virei na nesna direção e então... Também paralisei.

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Bjs, bjs!

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