30. Visita

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Na escola não se ouvia outro assunto pelos corredores que não fosse a festa de sábado à noite na casa da Barbie. Os privilegiados convidados estavam em polvorosa contando os minutos para as sete da noite do dia seguinte. Argh, eu não conseguia me imaginar numa festa com aquela gente. Eles ainda me olhavam como se eu fosse uma alienígena, uma aberração. Então o que eu faria nesta festa? Ainda mais agora que Beatriz parecia ser a melhor amiga de
Amanda Siqueira de novo. Ela certamente estaria lá. Como eu chegaria com Robert? Como não a magoaria pelo simples fato de estar presente?
Ah, queria que as coisas pudessem ser diferentes. Que a alma de Beatriz aceitasse que Robert jamais a protegeria, que ela pudesse perceber que, se quisesse ser feliz um dia, precisava libertar-se da ideia de possuí-lo.
Na Educação Física, Ana veio me contar que ela e Renan iriam juntos à festa, não como um casal, ainda, mas que ele a buscaria em casa e ela aproveitaria a oportunidade para apresentá-lo à mãe. Pensei em contar que Robert também me buscaria em casa, mas isso levantaria suspeitas quanto à veracidade de que éramos apenas amigos.
Na aula de Geografia Tevi Cheng devolveu o CD que eu havia lhe emprestado. Disse que
tinha feito uma cópia e que as músicas eram muito boas. Quando perguntei se ele sabia se Marcos estaria na festa da Amanda, Tevi me disse que provavelmente não, pois Marcos não havia sido convidado.
Morri de raiva ao saber que Amanda havia ignorado meu amigo dessa maneira. Depois me lembrei que ela só não havia feito o mesmo comigo porque desejava desesperadamente a presença de Robert.
Eu, com certeza, teria que conversar com Robert a respeito do que faríamos sábado à noite, e a festa de Amanda era o último programa que eu tinha em mente.
Depois da escola, Robert e eu passamos em um posto de gasolina para abastecer o tanque do jipe e depois seguimos pra minha casa. Fomos para o terraço do prédio. Gostávamos de passar algum tempo ali, olhando a vida passar lá embaixo, na rua sempre movimentada.
Tentei entrar no assunto da festa pelas bordas. Mas não funcionou.
- Não quero ir! - confessei, quando vi que não dava para protelar de nenhuma forma.
- E por que não? É uma festa: música, diversão, dança... - disse ele animadamente.
Suspirei e dei de ombros, debruçada sobre a fachada amarela de segurança, com o rosto
virado para baixo propositalmente, porque eu sabia que Robert estava me olhando.
- Qual o problema? - ele quis saber.
Abanei a cabeça.
- Beatriz. Ela provavelmente estará lá, e não quero causar mais dor, aparecendo lá com você... é desnecessário. - eu ainda encarava a rua.
- Então quer dizer que pretende deixar de ter uma vida social, porque isso magoaria Beatriz?
- Essa é a ideia! - concordei.
- Me desculpe, mas é uma ideia um pouco idiota.
- Nunca te contei? Tenho tendência a idiotices! - eu disse tentando fazer piada. Virei-me para olhá-lo. "Ele não achou graça", constatei depois de meio segundo.
Ele parecia de repente sério demais.
- Já não basta você ser ridiculamente privada de tantas coisas no nosso... relacionamento? Quer agora privar-se também de sair em público comigo?
- Não é uma privação. Para mim, seria muito mais interessante passar a noite de sábado em casa, sozinha com você. - afirmei com um pouquinho de malícia na voz, não muita.
Ele desviou os olhos, quase indignado. Desviei também. E, lá de cima, ficamos observando um casal que passava pela calçada de mãos dadas. Era uma linda visão, quase pude sentir inveja deles, mas o casal entrou em um prédio há alguns metros dali, levando nossa visão embora.
- Como se ficar sozinha comigo fizesse alguma diferença. - murmurou. Seu rosto estava fechado numa máscara de ressentimento.
- Para mim faz, toda diferença! - murmurei, com toda convicção que pude.
- Ísi, eu quero ir com você a essa festa. - ele hesitou. - É importante para mim.
- E por que é tão importante?
- Porque é o mínimo de normalidade que posso te oferecer num namoro de verdade.
- Eu já disse, nunca sonhei com um relacionamento normal, então, não se preocupe com isso.
- Mas um cara pode desejar levar sua linda namorada a uma festa, não pode? - sua voz era macia, o rosto inocente.
Pronto, ele havia vencido. Havia quebrado toda e qualquer resistência da minha parte ao pronunciar aquela frase, aparentemente, inocente.
Respirei fundo antes de conseguir falar.
- Correção: em primeiro lugar você não é um cara, é um anjo. - ele riu, mas assentiu - E em segundo, quanto a parte em que se referiu a mim como sua... linda namorada, não precisava forçar a barra, afinal nós dois sabemos que não sou...
- Shhh! - ele me interrompeu, inclinando-se para mim - Você é linda, e é minha -
murmurou, o rosto a um milímetro do meu.
- Sua! - concordei, ofegante e zonza. - Só sua!
- E então, vamos à festa? - perguntou num sussurro.
Eu estava fraca.
- Sim! - respondi prontamente, sem ouvir minha própria voz.
Antes que eu pudesse cometer um grave deslize, Robert já estava longe o bastante, debruçado no beiral do terraço. Seu rosto corado reprimia o impulso de ceder ao desejo.
Fiquei feliz ao me lembrar que não era a única que tinha dificuldades para manter o controle.
- Você sabe que isso não é justo, não sabe? - arfei, ainda tentando me recuperar.
- O que não é justo? - perguntou ele, com um sorriso presunçoso.
- Que use sua beleza e todo seu charme pra me manipular desse jeito, sou fraca demais para não ceder!
- Não estava te manipulando! - defendeu-se.
- Ah, tá, então me avise quando estiver. - Ele riu de meu sarcasmo.
- Será divertido, Ísi, a festa.
- Claro que será, uma festa com duas dúzias de pessoas que não gostam de mim e outra dúzia que ficaria muito feliz se me visse voltar para o planeta de onde saí. Éh... sem dúvida o tipo de diversão que eu desejo. - comentei, reforçando ainda mais o sarcasmo.
- Está ficando boa nisso, heim?
- Boa em quê?
- Nesse negócio de ironizar as coisas!
Corei um pouco com o comentário, mas não me senti realmente constrangida. Era bom saber que de certa forma ironizar as coisas deixava algumas situações menos difíceis.
- Pretendo ganhar uma medalha ou coisa assim neste quesito - ele tinha razão eu estava mesmo ficando boa.
Nós dois rimos.
Faltava pouco menos de vinte minutos para Lena chegar, quando Robert disse que ia embora.
- Você não precisa ir. Lena terá que aprender a conviver com você, afinal você é meu namorado, não é? - ah, era uma sensação maravilhosa pronunciar aquela palavra: na-mo-ra-do.
- Se eu quiser te levar a uma festa, é melhor não provocá-la com minha presença indesejada.
- Sua presença é totalmente desejável para mim! - afirmei, meu desejo embutido em cada palavra.
Ele revirou os olhos.
- Você entendeu o que eu quis dizer.
Não protestei, não adiantaria protestar. Acompanhei-o até a porta de saída do prédio.
- Vou te ver essa madrugada? - perguntei esperançosa.
- Acho que você precisa dormir um pouco, temos uma festa amanhã!
- Mais um motivo para eu não querer ir. - objetei meio irritada.
- Só não quero te cansar demais, Ísi. - explicou ele, tentando me fazer entender o que meu corpo não entendia.
- Só me canso de ter que ficar longe de você, ainda mais agora que encontramos uma forma de... ficarmos mais juntos. - resmunguei como uma criança mimada.
- Eu sei. Também não gosto de ficar longe de você.
- Não é o que parece! - retorqui, mexendo na maçaneta da porta, como se ali tivesse algo muito interessante, apenas para não ter que olhar o rosto dele.
- Não diga isso! - ainda bem que eu não estava olhando seu rosto, sua voz era severa o bastante para eu me arrepender de ter dito aquela bobagem.
- Me desculpe! - pedi, levantando os olhos para sondá-lo. Ele não parecia tão nervoso como imaginei que estivesse. - Sei que disse uma bobagem, não quis duvidar de você. Só que é difícil pra mim...
- Tudo bem, eu sei! - pronto eu já estava perdoada. Havia um sorriso terno no fundo de seus olhos.
Então nos despedimos, como sempre nos despedíamos:
- Com você em seu coração!
- Comigo em seu coração!
Nenhum beijo. Nenhum abraço. Nenhum toque. Nada, - como sempre.
Nunca gostava de vê-lo partir, mesmo sabendo que o veria no dia seguinte. Era sempre ruim vê-lo afastar-se de mim. Uma dor fraquinha, porém angustiante, incomodava meu peito a cada uma de nossas despedidas e só passava quando eu o tinha diante de meus olhos oura vez.
Arrastei-me escada acima e, quando eu estava prestes a entrar no apartamento, alguém me chamou no corredor.
- Ísi! - era Suzana. Vinha em minha direção segurando Jéssica no colo. - Por favor, você
precisa me ajudar. - sua voz era desesperada - Marcos não está em casa, não sei onde aquele garoto anda se enfiando todas as tardes. De uns tempos pra cá ele anda meio estranho.
Engoli em seco, não era uma coisa que me agradava ouvir.
Suz continuou:
- Acabei de receber uma ligação de um cliente, seção de emergência, entende? E não tenho com quem deixar Jéssi, mas também não posso levá-la comigo.
- Quer que eu fique com ela! - concluí cautelosa.
Eu gostava de crianças, mas não gostava da ideia de ficar completamente responsável por uma. Mal conseguia cuidar de mim mesma. E se acontecesse alguma coisa: ela podia cair e começar a chorar, e se engasgar com o choro...
- Prometo que não vou demorar! - suplicou a psicóloga avoada. Então pensei: "Se Suzana consegue cuidar da filha, sendo tão atrapalhada como é, acho que posso ficar com Jéssi por um curto período de tempo", e Lena logo estaria de volta, não seria difícil.
- Claro! - cedi, ainda um pouco apavorada.
Suz passou-me a criança com uma rapidez incrível. Talvez com medo de que eu mudasse de ideia. Depois colocou uma bolsa sobre meu ombro e, antes que eu ou a garotinha pudéssemos protestar, ela já sumia pelas escadas.
Entrei com a criança no colo, tentando manter a calma. Levei Jéssica para o sofá. Ela estava com uma cara que me deixou assustada. Seus lábios miúdos e rosados estavam repuxados num beicinho típico de choro, os olhinhos brilhando com as lágrimas que se aproximavam.
"Ah, meu Deus, que droga. E agora?"
Eu precisava fazer alguma, precisava distraí-la. Se ela começasse a chorar... eu ficaria tão
apavorada que provavelmente começaria a chorar também e essa não era uma boa cena para Lena ver quando entrasse pela porta
- Hã... quer biscoito? - perguntei empolgada, como se biscoito fosse a coisa mais legal do mundo. Jéssi não reagiu a minha pergunta, seu rostinho ainda mostrava sinais do choro interminável que estava por vir.
- Certo, hã... nada de biscoito, então... que tal ver desenho? Isso, vamos ver um desenho? - falei, enquanto ligava a TV e procurava por um canal com programação infantil.
"Porcaria", rodei por todos os canais: novela, jornal, documentário sobre a guerra no Iraque, reportagem sobre cirurgia plástica, outra novela..., mas nada de desenho. Nenhum desenho animado. Olhei para Jéssi ao meu lado no sofá, meu tempo estava se esgotando e se eu não encontrasse uma distração, uma boa distração, teria que aguentar a sinfonia desastrosa que ela
estava prestes a me apresentar.
"Pensa, Ísi, pensa"
- Quer fazer uma coisa bem legal? - perguntei, tomando-a no colo e seguindo para o meu ateliê.
Coloquei um pouco de tinta vermelha e laranja sobre minha paleta - cores vibrantes, crianças adoram. Peguei um de meus pincéis já bem gastos, uma tela, das pequenas, e dei a ela.
- Você gosta de pintar? - perguntei, colocando a tela e a paleta no chão e estendendo o pincel para ela.
Estava funcionando. Ela me sorriu. Deduzi que fosse um "sim".
Jéssi segurou canhestramente o pincel e começou a lambuzar a tela com tinta. Era engraçado vê-la tentando dominar os próprios movimentos com as mãozinhas atrapalhadas sujando-se deliciosamente de tinta, enquanto seus olhinhos ganhavam um novo brilho que nada tinha a ver com lágrimas.
Ela usou toda a tinta que eu havia colocado a sua disposição e, quando a paleta ficou vazia, olhou-me exigindo mais material para sua obra de arte. Dei-lhe mais tinta laranja e vermelha, uma quantidade considerável. Ela sorriu satisfeita. Eu também estava satisfeita, por ela não estar chorando.
Fazia quase meia hora que estávamos ali. Jéssi já havia me pedido mais tinta pela terceira vez e Lena ainda não havia chegado. Comecei a temer que, dali a alguns minutos, Jéssi enjoasse de brincar de pintora e aí eu não teria um plano B para continuar a distração.
Quando eu estava prestes a sacrificar mais uma de minhas telas limpas, pelo bem de meus ouvidos, escutei o barulho de chaves na porta da frente.
- Tia Lena chegou! - anuncie entusiasmada. Fomos quase correndo para a sala recebê-la, Jéssica carregava sua tela com as duas mãos.
- Veja quem está aqui! - eu disse a Lena, quando a miniatura de Suz surgiu de detrás de mim.
- Jéssi! - exclamou ela como se não visse a menina há dias.
- Óla o que fizi pa voxê, tití Ena! - Jéssica entregou a meleca de tinta para Lena.
"Engraçado, eu lhe dou um brinquedo legal e Lena ganha o presente? Isso não é Justo."
- Por que demorou pra chegar? - reclamei - Era pra estar em casa há quase vinte minutos, achei que teria que gastar todos meus tubos de tinta e telas para entretê-la.
- Ah, não seja exagerada! - repreendeu-me Lena indo para a cozinha. Jéssi e eu a seguimos em fila indiana. - Demorei porque passei naquele restaurante da rua sete. Trouxe comida italiana! - disse colocando a sacola sobre a bancada. Lena não estava cozinhando muito ultimamente, sempre trazia alguma coisa da rua.
Naquela noite Jéssica jantou conosco. Ela comia mais do que uma garotinha da sua idade deveria agüentar. Lambuzou-se toda com o molho do espaguete e Lena ria como se isso fosse a coisa mais adorável e única de todo o mundo.
Sem cumprir o que havia prometido, Suzana realmente demorou muito em sua seção de emergência.
Mas com Lena por perto era mais fácil contar o tempo, a responsabilidade já não era mais minha.
- Obrigada, Isi. Você me salvou! - agradeceu Suz. segurando a filha que dormia em seus
braços. Tentei dizer que não havia sido nada demais, mas preferi sorrir em silêncio. Temia que minhas palavras pudessem significar algo como: "Quando precisar, não hesite em me chamar". Seria demais repetir a experiência.
Coloquei os pratos na lava-louça e fui escovar os dentes. Lena e eu fomos para cama logo depois que Jéssica voltou pra casa. Troquei de roupa e me deitei, mas não consegui pegar no sono rapidamente. Meu quarto parecia vazio e solitário, usei alguns flashes do meu dia, partes antes da Jés, claro, para ajudar a inconsciência a encontrar o caminho para me apagar. Foi mais fácil assim. Depois de alguns minutos de concentração em "seus olhos e em seu sorriso" eu já sentia minha cabeça longe
deste mundo, vagando para o vazio repousante.
Foi um sono profundo e calmo, mas algo me despertou para a escuridão do meu quarto
silencioso. Não sei ao certo o que me fez acordar sobressaltada sobre a cama, mas sei que não foi nenhum sonho, foi algo... real, que parecia ter tocado levemente meu rosto. Olhei para minha janela. Estava aberta. Então pensei que, provavelmente, o que havia me acordado fora o vento da noite, mas quando me levantei para abaixar o vidro e fechar as cortinas, ele estava
ali, de costas pra mim, saindo pela porta do quarto, flutuando em sua suavidade magnífica.
Eu não estava sonhando, dessa vez eu tinha certeza de que estava bem acordada. Meu coração primeiro parou de bater por uns cinco segundos, depois recuperou gradualmente o ritmo até parecer um cavalo selvagem em fuga.
Eu quis segui-lo e confrontá-lo. Perguntar-lhe o que estava fazendo em meu quarto? Qual era motivo daquela visita? O que ele queria comigo? Mas eu estava apavorada demais para bancar a corajosa. Peguei meu celular na mesinha ao lado da cama e na discagem rápida teclei "ligar".
- Alô!
- Robert! - minha voz era desesperada.
- O que foi? - perguntou ele sentindo minha tensão.
Respirei fundo.
- Ele.. esteve aqui... ele esteve aqui no meu quarto... ele... - gaguejei incoerentemente.
- Ele quem? - perguntou a voz rouca e tensa, que não vinha mais do aparelho colado em meu ouvido, mas sim de detrás de mim.
Virei-me aturdida.
Robert estava diante de mim, não segurava mais o celular. Eu nunca me acostumaria com isso. Pendi um passo para trás, as mãos voando para a boca de puro pavor.
__ Meu Deus!
- Me desculpe. Te assustei? - acudiu ele, percebendo minha provável palidez repentina. Não era quem eu presumia que fosse. E isso era tranquilizador. - Venha, é melhor você se sentar! - disse ele, sentando-se em minha cama.
Sentei-me ao seu lado o mais próximo que pude, tomando sempre o cuidado de não tocá-lo.
- Quem esteve em seu quarto? - perguntou ele, trazendo à tona em minha mente a imagem do homem de branco dos meus sonhos ou... pesadelos, melhor dizendo.
- Ah, é! - murmurei. Eu quase havia me esquecido o real motivo para Robert estar ali. Era fácil esquecer tudo quando eu estava com ele.
Me lembrei do manto branco flutuante, saindo pela porta do meu quarto, meu coração se apertou novamente, e então um nome foi sussurrado em minha mente
__ Ogue... - falei cheia de uma certeza tenebrosa. De repente parecia que eu sempre soubera que era ele o manto branco, de risada sinistra, que perturbava meu sono - Ogue... - repeti - ele esteve aqui! - falei, e eu podia sentir o pavor amargo em cada uma daquelas palavras.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now