11. Os Sofrimentos do Jovem Werther

3.8K 361 12
                                    

Dedicado à Agda Souza e Maria Fernanda.

"Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuances de uma cor."
Mario Quintana

- Tenho boas notícias. - disse Robert, surpreendendo-me no corredor, quando eu seguia para o refeitório, durante o almoço de uma quinta-feira. Por sorte eu estava sozinha, Marcos não ficaria muito contente com aquela abordagem. - Acho que encontrei o livro ideal para o nosso trabalho! - anunciou todo animado, caminhando ao meu lado.
- É mesmo? - indaguei curiosa. - Qual o nome? Será que é de algum autor que eu conheça?
Ele sorriu misteriosamente antes de fazer a revelação. Eu adorava quando ele tentava jogar um charme para cima de mim, como se já não fosse charmoso o suficiente.
- É um livro de Goethe, conhece? - perguntou arqueando as sobrancelhas.
Eu já tinha ouvido falar de Goethe, mas nunca havia lido nenhum de seus livros.
- Foi ele quem escreveu O Fausto, não foi? - perguntei, com uma leve pontada de incerteza.
Me lembrava vagamente de algum professor, em meu antigo colégio, que comentará sobre o sábio que fizera um pacto com o demônio, porque sentia-se insatisfeito com tudo o que já possuia.
- Sim, ele escreveu O Fausto, mas não foi este livro que escolhi. - Robert estava sorrindo, a ansiedade brilhando em seus olhos.
- Ah não? - indaguei, quando ele começou a subir a escada que levava ao andar dos últimos anos. Eu o segui, aliviada por desviármos o caminho do refeitório, não seria muito agradável aparecer toda entusiasmada ao lado de Robert Castro na frente de todas aquelas pessoas, principalmente, Marcos, Beatriz e Amanda.
- Se você concordar, leremos "Os sofrimentos do jovem Werther". - disse ele, sentando-se no parapeito da janela do hall da escada. Me sentei de frente para ele.
Robert abriu sua mochila e pegou um exemplar do livro que acabara de mencionar. Não era um volume muito grosso, pelo que pude perceber, talvez pouco menos de duzentas páginas.
- Você já leu? - perguntei.
- Na verdade não, apenas uma breve sinopse na internet - admitiu ele.
- E será que é um bom livro, quero dizer, para se fazer um trabalho como o nosso?
- Acho que vamos ter que descobrir!
- Certo. Vou passar numa livraria depois da escola e comprar um exemplar para mim! -
comentei.
- Não mesmo! - exclamou ele perplexo, interroguei-o com os olhos. - Dona Celina disse que teríamos que fazer este trabalho juntos! - proclamou com firmeza.
Fiquei confusa.
- Acho que quando ela disse juntos, não quis dizer que teríamos de ler juntos - constatei.
- A leitura será mais interessante assim, aproveitaremos muito mais o conteúdo - garantiu,jogando novamente seu charme, agora involuntário, para mim.
- Tudo bem. - concordei, numa rendição muito fácil. - Vamos fazer do seu jeito então. Quando podemos começar?
- Agora mesmo! - sugeriu ele. O quê? Alí, na escada mesmo? Seria no mínimo estranho. Mas como eu poderia negar?
Não, não poderia.
- Quer começar? - perguntou estendendo-me o livro. Pisquei algumas vezes para manter-me concentrada. - Ou prefere que eu comece? - emendou diante de minha hesitação.
Puxei o livro de suas mãos, cravando os olhos presunçosamente nele. Abri a primeira página, e pigarreei algumas vezes para limpar a garganta antes de começar:
- "Os sofrimentos do jovem Werther. Primeiro livro. Quatro de maio de mil setecentos e setenta e um" - levantei os olhos para sondar sua expressão, sentindo-me meio ridícula. Mas Robert tinha o rosto revestido por uma máscara de deleite, como se ouvisse os acordes de uma orquestra maravilhosa. Por isso forcei minha concentração ainda mais nas palavras escritas.
- "Como estou feliz por haver partido! Querido amigo, o que não é o coração humano! Deixar-te a ti, a quem tanto estimo, de quem era inseparável e estar feliz! Mas sei que hás de perdoar. Minhas demais relações, todas elas não pareciam escolhidas pelo destino, para angustiar um coração como o meu? ..." - fiquei absorta naquelas palavras. O tal de Werther, escrevia cartas a um amigo, um grande amigo... da mesma maneira que eu escrevia cartas a Sara... E suas palavras... eram tão parecidas com as minhas...
Continuei a leitura abismada com tanta coincidência, enquanto Robert ouvia a tudo numa concentração pétrea. O sinal tocou exatamente quando terminei de ler a carta do dia treze de maio: "- De resto, cuido deste coraçãozinho como de uma criança doente, faço-lhe todas as
vontades. Mas não conta isso a ninguém, há pessoas que poderiam incriminar-me por isso."
Robert tomou gentilmente o livro de minhas mãos e depois me acompanhou até a porta da sala de Biologia. Seu rosto estava radiante quando paramos para nos despedirmos.
- E então, o que achou do livro? - perguntou, analisando a capa do exemplar.
- Acho que vou esperar sua vez de ler, para dar a palavra final - arfei, tentando fazer
mistério. Robert sorriu e, por um segundo, eu podia jurar que ele havia estendido a mão para tocar meu rosto ou meu cabelo, sei lá, mas ao contrario do que eu esperava, ele tocou o batente da porta, crispando os lábios numa linha firme, fazendo desaparecer o sorriso de um segundo atrás. Estava tão serio de repente.
__ Tudo bem! - foi só o que ele disse, num tom melancólico e distante, antes de seguir para a Educação Física. Essa reação me deixou inquieta pelo resto do dia. Por que ele sempre fazia isso? Sorria num minuto e no outro parecia tão impaciente, como se simplesmente não visse a hora de se livrar logo de mim?
Na saída, eu não o vi no estacionamento, o que só fez aumentar meu tormento interior. Não havíamos combinado de nos encontrar aquela tarde, mas isso não me impedia de manter uma pequena esperança de que ele me fizesse um convite para ir até sua casa ou qualquer outro lugar. Infelizmente isso não aconteceu, então voltei pra casa com Marcos, lutando contra meu mau humor.
Marcos me convidou para ir até uma loja de discos, mas recusei dando-lhe uma desculpa sobre ter que fazer a lição de casa. Eu sabia que era um exagero, mas não ver Robert por algumas horas era suficiente para me deixar desanimada.
Entrei em casa e fui direto para a cozinha. Abri a geladeira mas não havia ali nada que eu realmente quisesse comer. Arrastei-me até meu quarto, joguei a mochila num canto e me atirei de costas na cama. Cobri o rosto com o travesseiro e tentei concentrar-me em qualquer coisa que não tivesse a ver com certos olhos, certo sorriso, certa voz rouca, certo rosto tentador demais.
Ah! Não estava rolando.
Quanto mais eu tentava não pensar, mais minha mente fabricava imagens perfeitas de um certo alguém lindo demais. Fiquei nessa batalha mental desnecessária por um longo tempo e então não resisti. Levantei e troquei de roupa. Enfiei-me numa camiseta puída e no meu macacão jeans velho manchado de tinta, depois prendi o cabelo num rabo de cavalo. Procurei entre minhas coisas, mal organizadas, por meu CD de músicas favoritas. Era uma seleção de músicas instrumentais variadas que Sara me dera de presente em nosso último aniversário.
Coloquei-o para tocar no aparelho de som da sala, aumentei o volume, e fui para meu ateliê.
Meu coração estava inquieto, o que era um ótimo estímulo para eu pintar.
Separei os pincéis, coloquei vários tons de azul e amarelo em minha paleta, um bocado de branco, carmim, sépia e cobalto. Coloquei uma tela limpa sobre o cavalete, molhei o pincel no branco e coloquei-o com suavidade no tecido. Ele deslizou com a graciosidade de um patinador no gelo. A música alta vinda da sala combinava com a coreografia que eu executava na tela, inspirando-me ainda mais. Era fácil colocar meus pensamentos pra fora quando eu estava deprimida, as emoções pareciam mais tangíveis quando eu me sentia assim. Talvez por esse motivo eu pintasse com tanta frequência quando ainda morava interior.
Não me preocupei com a beleza ou com a clareza na mistura das cores, preocupei-me apenas em colocar no plano material tudo o que estava dentro de mim. Uma explosão de cores tomava forma perante meus olhos e, como não poderia deixar de ser, um rosto surgia por entre as cortinas azuladas de nuvens de tinta.
Sereno, cálido, puro e magnífico. Olhos profundos, intensos e incomuns. Os acordes da guitarra de Hendrix começaram a soar na sala. Eu era louca por essa canção instrumental, tão cheia de vida, de movimento, cheia de vibração e prazer. Eu estava num frenesi absoluto, enquanto esculpia em tinta o rosto mais adorável de todos. Meu coração estava entregue e
meus olhos tentavam evitar a água que os afogava.
No último acorde, a última pincelada.
Permaneci imóvel, contemplando minha nova criação, eu estava quase ofegante. Sequei os olhos para poder vê-lo com clareza.
- Nunca! - murmurei na solidão do cômodo. Nem mesmo Rembrandt, Turner, Monet, Botticelli ou qualquer outro artista, fosse ele Impressionista, Renascentista, Barroco... jamais conseguiria retratar com fidelidade o rosto de Robert Castro. Por mais preciso e talentoso que fosse o artista nunca seria o suficiente.
-- Nunca! - repeti conformada com meu fracasso.
Algumas batidas fortes na porta de entrada, sobrepondo-se a nova canção que começava a tocar na sala, tiraram-me de minha ilusão.
Sequei os olhos novamente e corri para atender.
Como, em um segundo podemos estar caindo de um abismo e, no segundo seguinte, estar diante dos portões do paraíso?
Acho que não há explicação.
- Olá! - disse a voz que acalmava meus temores, o sorriso que aplacava minhas angústias.
Robert estava parado diante de mim, como um sonho que ganhava vida. Não senti o chão em baixo de meus pés. Convidei-o a entrar, comunicando-me por gestos, as palavras estavam perdidas em algum lugar dentro da minha cabeça.
- Sei que não havíamos combinado nada para está tarde... - sibilou ele em pé na sala,
enquanto eu abaixava o volume do rádio e desmoronava no sofá, aturdida com tanta beleza.
- Tom Jobim? - indagou ele, para a música que agora tocava de fundo.
- E... Vinícius de Moraes. - completei. Era uma versão para cordas e piano de Insensatez. Só mesmo Sara para colocar Tom, Vinicius e Hendrix no mesmo cd. Ela era um gênio. - Eu... não te vi na saída. - comentei, fingindo desinteresse.
Não queria que ele percebesse que eu havia cogitado a ideia de chamar a polícia pelo simples fato de ele não estar no estacionamento da escola no final das aulas.
- Tive que resolver algumas coisas em casa, por isso saí depressa. - explicou.
- Ah, você não disse que vinha...
- Eu sei, me desculpe. Se estiver ocupada eu...
- Não, não estou ocupada! - garanti de prontidão. Eu jamais estaria ocupada para ele. - Tem certeza? - indagou, analisando meu traje.
Ah, não, como eu havia me esquecido? Estava com aquele macacão horrível e o cabelo preso num rabo de cavalo desgrenhado. Eu devia estar horrenda, só esperava que meu rosto não estivesse sujo de tinta
- Você me parece um pouco ocupada! - observou ele, estendendo a mão para minha
bochecha e removendo dalí alguns respingos de tinta azul.
Corei.
- Nada que não possa ser deixado para depois! - me entreguei.
- Estava pintando?
- Não. Só fazendo alguns testes, pra ver se descubro uma nova cor. - menti. - Me dê um minuto. - pedi, correndo direto para a pia do banheiro.
Robert esperou pacientemente na sala, enquanto eu lavava o rosto, as mãos, algumas partes dos braços e soltava o cabelo para parecer mais humana outra vez. Pensei em trocar de roupa, mas pareceria desesperada demais.
Voltei para sala, lutando com meus batimentos cardíacos, tentando manter a calma. Fiquei aliviada ao encontrá-lo ainda de pé na sala, seria bem embaraçoso se eu tivesse que explicar o que o "rosto" dele estava fazendo numa tela sobre o cavalete no meu ateliê.
- Posso saber a que devo a honra de sua visita? - perguntei com uma naturalidade que arranquei nem imagino de onde.
- Vim te entregar isto. - ele tirou meu livro de matemática da mochila.
- Onde o encontrou?
- Fui te procurar na saída, depois que tocou o sinal, mas você já não estava mais em sua sala. Então vi seu livro lá, esquecido, abandonado em cima da carteira. - ele riu.
Aquilo não estava certo, ele acabara de me dizer, um minuto atrás, que havia saído com pressa e agora dizia que havia me procurado, mas eu já não estava mais em minha sala?
- Eu não entendo. Você disse que...
- Você não gosta mesmo dos números, não é? - interrompeu ele, a voz animada, distraindo minhas interrogações.
- Eu tento manter o máximo de distância possível deles - resmunguei - mas você estragou meus planos.
- Planos?
- Sim, eu teria uma boa desculpa para não apresentar os exercícios amanhã, "perdi meu livro!"
- Então o esquecimento foi proposital?
- Talvez - dei de ombros -, mas não importa mais, o livro de matemática está são e salvo, não é?
- São e salvo! - repetiu ele, me estendendo o único livro que não desejava ler na vida.
Peguei-o com desprezo e joguei-o em cima do sofá.
- Posso te servir alguma coisa? - perguntei automaticamente. Eu simplesmente não queria que ele fosse embora.
Esperei um segundo, muito longo, por sua resposta. Meu coração palpitava veloz, como se eu tivesse perguntado se eu tinha alguma chance, e estivesse esperando por uma afirmação.
- Claro! - respondeu ele, os olhos fixos em mim. Ah, a resposta certa para a pergunta errada.
Fomos para a cozinha e lhe servi um copo de suco de uva, não tínhamos Coca aquele dia.
- Como estão indo suas notas com o seu Walter? - ele quis saber, e parecia mesmo preocupado com meu rendimento em matemática.
Dei um longo gole em meu suco antes de dizer a verdade.
- Péssimas - reclamei.
- Se quiser posso te ajudar de vez em quando. - ofereceu com generosidade.
- Obrigada, mas esse é o tipo de problema que acho que tenho que resolver sozinha. Só
espero que Deus me ajude a não ficar de recuperação. - resmunguei fitando meu copo.
- Não acha que Deus tem outras coisas em que pensar para preocupar-se com esse tipo de problema? - a voz de Robert era racional demais. Havia um tom sarcástico e meio pejorativo quando ele mencionou o nome de Deus.
Ergui os olhos para encarar seu rosto, e seus olhos brilhavam estranhamente, como se
alimentassem algum prazer interior secreto.
- Se Deus não pudesse olhar para todos os tipos de problemas, não colocaria tantas pessoas no mundo! - arfei, baixando os olhos para o copo em minhas mãos outra vez. Eu não era nenhuma bitolada religiosa, mas tinha minha fé.
Robert suspirou longamente antes de voltar a falar.
- Bom, acho que Ele exagerou um pouquinho então, afinal, há muitos problemas, e muitas pessoas, que parecem ter sido esquecidos completamente. Há muito sofrimento desnecessário. - rebateu, a voz ainda mais racional que antes.
- O sofrimento é necessário para o crescimento espiritual do ser humano. - contrataquei. Meu queixo elevou-se um pouquinho, talvez de indignação.
Ele sorriu presunçoso, fitando meu rosto.
- Garanto que quem sofre não pensa dessa mesma forma. - havia um vestígio de rispidez em suas palavras. - Se Deus olhasse mesmo para todas as pessoas, o mundo não estaria como está. Tantas pessoas inocentes sofrendo por nada e...
Eu o interrompi.
- Você não acredita no amor de Deus? - minha pergunta era quase uma acusação. - Aliás, você acredita na existência de Deus? - não era a primeira vez que eu tinha este
pensamento. No jogo de damas, quando ele me perguntou a respeito do amor, tive a
impressão de que ele fosse meio descrente quando dei minhas resposta.
Robert encarou-me em silêncio. Os olhos parecendo querer revelar-me alguma coisa, mas por alguma razão ele se continha.
Eu não podia acreditar que ele realmente não acreditava em Deus. Isso não podia ser verdade, quer dizer, ele até que, de certa forma, tinha razões para não acreditar - seus pais estavam mortos - mas, se não acreditasse, nada em sua vida faria sentido. Ele tinha que acreditar, ou pelo menos tinha que tentar acreditar. Como era o meu caso.
- Vem comigo! - eu disse saltando do banco. Robert interrogou-me em silencio. - Vamos! - ordenei, andando em direção à porta da frente.
- Aonde vamos? - perguntou, sem dar nenhum passo.
Virei-me devagar e com a melhor expressão de mistério que consegui fazer, sussurrei.
- Sem perguntas!

IntrínsecoWhere stories live. Discover now