10. Tempestade (II parte)

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Pedacinhos de céu estendiam-se acima de nós, por entre as folhas do Ipê que balançavam com a brisa insinuante da tarde.
- Vai chover! - comentou Robert, sua voz era baixa, suave.
- Não vai não. - discordei. - O céu está limpo, quase não há nuvens!
- Olhe para o oeste - disse ele apontando com o indicador. - Vê as nuvens que se
aproximam? Em poucos minutos chegaram até aqui!
Nuvens enormes e levemente acinzentadas moviam-se no céu não muito longe dali, talvez ele tivesse razão, ia mesmo chover. E acho que só para comprovar isso, um trovão ensurdecedor irrompeu o silêncio.
- É melhor voltarmos. - sugeriu Robert, virando-se para mim com um sorriso de total presunção. Mantive os olhos nos dele por um breve momento. Seu rosto, de ponta cabeça,
estava a trinta centímetros do meu.
- Não quero ir. - sussurrei voltando a olhar o céu, observando acima de nós um amontoado de nuvenzinhas que começava a dançar. - Vou esperar pela chuva! - a presunção agora era minha.
- Você é mesmo maluca! - sussurrou consentindo em esperar pela chuva comigo.
Não foi preciso esperarmos muito tempo. Em poucos minutos o bosque todo debatia-se
freneticamente sob o vento impetuoso que tomava conta de tudo. O céu fechou-se num
emaranhado cinza-esbranquiçado de nuvens imensas, que pareciam estar a poucos metros de nós, de tão espessas e enormes. Continuamos deitados, contemplando aquele maravilhoso espetáculo da natureza, esperando pacientemente pelo ápice.
Senti Robert ofegar ao meu lado, e quando me virei para olhá-lo ele já me fitava. Senti minha própria respiração ofegar ao encontrar seus olhos em mim. Era desconcertante e assustadoramente maravilhoso. Havia tantas coisas naquele olhar e eu era tão incapaz de compreender qualquer uma delas, mas eu não me importava muito com isso, porque aquele
olhar me causava uma sensação maluca e irrefutável de querer pertencer a Robert Castro, talvez mais até do que pertencia a mim mesma.
Enquanto eu ainda o encarava uma gota de chuva espatifou-se nos centímetros de grama entre meu rosto e o dele. E numa fração de segundos milhares delas começaram a cair, golpeando tudo o que encontravam pelo caminho: flores, folhas, terra, corpos repousando na relva.
Continuamos alí, deitados, sendo acariciados violentamente pela tempestade que caia sobre nós, fria e deliciosa. Era uma dessas tempestades que chegam de repente, que caem com força, cada gota carregando quase um litro d'água. Num minuto estávamos encharcados e pertencíamos à chuva, fazíamos parte da tempestade.
E eu não conseguia parar de olhá-lo. Encarávamo-nos como confidentes que partilham um segredo único. A água descia pela pele de seu rosto, pelos seus olhos que faziam parte daquele céu invadido por nuvens cinzas. Ah, em que vida eu sonharia com esse momento maravilhoso? Em que vida meu coração estaria inundado por tamanha felicidade apenas por saber que estava batendo e batia por uma única razão?
Porém, uma vozinha dentro da minha cabeça sussurrava o quanto aquilo poderia ser arriscado. "Você não devia estar aqui com ele, Isi". "Eu sei", respondi, tentando convencê-la de que eu também estava avaliando os riscos.
"Não se apaixone por mim... Não estrague tudo se apaixonando pir mim!", foi o que ele dissera. Ele estava cumprindo sua parte no acordo, estava sendo legal comigo, embora tenha deixado claro que ser legal não fazia seu estilo. Ele estava sendo absurdamente legal, e eu não podia, nem queria estragar isso. Mas parecia impossível que eu não colocasse tudo a perder, parecia impossível que eu realmente não estragasse tudo. Aliás, as chances de que aquele acordo, que eu nunca havia dito que concordava, desse certo, eram zero desde o primeiro momento. Eu havia me apaixonado por aquele garoto no instante em que coloquei os olhos nele, e não dava para mudar isso.
Robert permanecia ao meu lado, alheio ao esforço mental a que eu estava me submetendo para não me sentir culpada por estar ali com ele.
"Pare de olhar para ele" dizia a voz em minha cabeça "Eu não suportaria olhar pra você, se se apaixonasse por mim". As palavras dele ecoavam em minha mente. Ele não podia saber... "Fuja, Ísi, fuja desses olhos enquanto há tempo".
Levantei num salto, e simplesmente saí correndo. Não me importei com a direção que eu estava tomando, só me importei em correr. Em fugir.
- Aonde vai? - gritou Robert, levantando-se e correndo atrás de mim a toda velocidade.
Continuei correndo sem rumo, tentando escapar daqueles olhos, daquele rosto... mas apesar de ter uma boa vantagem a frente eu sabia que ele acabariam por me alcançar. Não estar montada em Sol era realmente uma desvantagem, e o vento forte e a chuva só dificultavam minha locomoção.
- O que houve? Isi? - Robert chamava por mim.
Não pude evitar de olhar para trás, apenas por um segundo, só para me certificar de que estava me saindo bem com minha fuga.
Droga! Ele estava cada vez mais perto de mim, cerca de cinco ou seis metros, e a distância diminuía cada vez mais. Não importava o quanto eu corresse.
Era realmente inevitável.
Robert me alcançou antes que eu pudesse perceber e ao tentar me segurar pelo braço, não sei como de repente fizemos o movimento errado, ou certo, e fomos parar direto no chão. Ele em cima de mim.
Era sempre nesta posição que os casais apaixonados costumavam cair em todos os filmes que eu já havia assistido na vida. Uma cena tão clichê que nunca imaginei que pudesse acontecer na vida real. E a sensação era maravilhosa.
- Me desculpe! - disse Rob ofegante.
Nossa respiração misturava-se a melodia da chuva. Estávamos ofegantes pela corrida... e pelo momento.
Eu sentia o peso do corpo dele sobre o meu, e mesmo com certa dificuldade para respirar, não me importaria de permanecer assim pelos próximos duzentos anos.
Robert me encarou por um instante e seus olhos pareciam confusos, quase frustrados.
__ Por que correu daquela maneira? - seus lábios estavam tão próximos do meu rosto que eu quase não conseguia raciocinar direito - Fiz algo de errado, algo que te incomodou? - perguntou, a frustração inundando seu rosto todo.
Como explicar que a única coisa que ele fizera de errado era ser tão incrível a ponto de me conquistar inteiramente quando eu não podia sentir-me conquistada.
- Acho melhor voltarmos agora. - murmurei tentando livrar-me de seu corpo. Robert colocou-se de pé num segundo e estendeu a mão para me ajudar a levantar também.
- Obrigada! - eu disse, aceitando a ajuda. Ajeitei meu cabelo ensopado, forçando o que
restava de decência em mim a assumir o controle. Olhei ao redor, estava escurecendo. Eu quase não enxergava nossas bicicletas lá longe. Ainda devia ser por volta de cinco da tarde,
mas as árvores imensas escureciam o bosque de uma forma espantosa.
- Acho mesmo que é melhor voltarmos agora! - enfatizei, caminhando para o que eu ainda podia ver das bicicletas.
- Ainda não! - disse Robert atrás de mim. Virei-me para encará-lo, confusa - Ainda quero temostrar uma coisa. - ele disse calmamente, caminhando para perto de mim.
- Está escurecendo rápido demais e...
- Tem medo do escuro? - ele estava zombando de mim?
- Não. - grunhi de nariz empinado. - Mas... pode ser meio perigoso... ficar aqui à noite.
- Não se preocupe. Eu te protejo se o bicho papão aparecer, tudo bem? - revirei os olhos para a piada sem graça. - Mas se você quiser mesmo voltar! - ele deu de ombros, chateado.
Ah, é claro que eu, mesmo não gostando muito da ideia, ficaria naquele bosque escuro e deserto com Robert por quanto tempo ele quisesse e nem me importaria se o bicho papão quisesse se juntar a nós.
- O que quer me mostrar? - perguntei, como se ainda avaliasse a hipótese de voltar pra casa.
- Você vai ficar? - ele quis saber antes de responder. Tive que ceder.
- Vou. - anunciei dando de ombros. - E então? Ele sorriu abertamente. Dizer "sim" já tinha valido a pena.
- Vamos pegar as bicicletas, antes que elas sumam de vista. - disse ele disparando a correr, sem responder minha pergunta. Também corri, mas só por que tive medo de ficar para trás.
- O que quer me mostrar? - insisti, quando o alcancei. Eu começava a tremer de frio.
- Só mais alguns minutos e te levarei pra casa pra colocar roupas secas! - prometeu ele ansioso ao perceber meu leve tremor.
Esperei em silêncio, encostada em minha bicicleta. Uma urgência crescendo no peito a
medida que o dia caia, transformando o bosque pacifico num ambiente encantadoramente austero.
De repente, bem na minha frente, uma pequena luz se acendeu. Não tive tempo de vê-la com clareza, pois tão rapidamente ela já tinha se apagado.
- Você viu isso? - indaguei assustada e surpresa. Robert riu alto no escuro.
- Espere! - sussurrou, vindo para mais perto de mim. Enrijeci.
Segundos depois eu entendi o porquê estávamos ali. Agora eram dezenas, ou talvez centenas, de luzinhas amarelas piscando por toda parte, como num globo de luz.
- Isso são...?
- Vagalumes! - completou Robert antes que eu pudesse dizer.
- Ah! - arfei maravilhada. Eram tantos e piscavam freneticamente como luzinhas de natal.
Centenas de mini-luminosos de neon brilhando no escuro. As faíscas mágicas da varinha de condão da fada madrinha brilhando em torno de Cinderela e sua nova carruagem. Aquilo parecia mesmo magia, como se o lugar fosse encantado.
- Isso é... incrível! - exclamei, deslumbrada com a cena.
- É, é incrível. - disse Robert a meu lado, depois de me deixar perdida em minha
contemplação bestificada. - É a época de reprodução. Por isso eles estão aqui e são tão numerosos. - explicou, enquanto eu ainda me surpreendia com as luzes.
- Parece que estou sonhando, tantas luzes, estou até um pouco tonta! - exclamei. Os mini-flashes confundiam minha visão como se eu tivesse batido com a cabeça.
Ficamos alí por algum tempo, brincando de tentar capturar as luzes. Mas os vagalumes eram mais rápidos que nós, ou pelo menos mais rápidos do que eu. Sempre que eu estendia a mão o flash se apagava, para acender em seguida a alguns centímetros de distância. Robert teve mais sorte, conseguiu capturar vários deles e me mostrava a luzinha brilhando na concha de suas mãos, antes de libertar o pequeno prisioneiro.
- Esse parece eufórico! - comentei, sondando curiosa pela fresta das mãos de Robert.
Um vento frio soprou da copa das árvores, tremi, e me abracei para espantar a sensação desagradável.
- Acho que já podemos voltar. - informou, libertando nosso cativo e pegando sua bicicleta.
Eu não queria ter que ir embora, mas eu estava realmente com frio, não ia aguentar por muito tempo antes que meus dentes começassem a bater.
Empurramos as bicicletas de volta até a estrada de asfalto, fora do bosque o dia ainda era claro.
__ Obrigada por me mostrar este lugar! - eu disse, quebrando o silêncio.
Pedalamos de volta apostando corrida. E ele venceu, óbvio.
Robert prendeu minha bicicleta na traseira do jipe e me levou pra casa. Lena já devia ter chegado do hospital e estaria se perguntando aonde é que eu estava, e ele insistiu em dizer que explicaria pessoalmente a minha irmã o porquê eu estava chegando em casa aquela hora e toda molhada.
__ Vou dizer a ela que não foi culpa sua! - disse ele enquanto subíamos as escadas.
Mas a presença de Robert não ajudou muito no pequeno sermão que fui obrigada a ouvir.
- Por que não me ligou? - alarmou Lena, quando ouviu o barulho da maçaneta na porta de entrada. - Foi para isso que te dei um celular. - completou, quando coloquei um pé pra dentro do apartamento. Robert vinha logo atrás de mim.
- Fiquei preocupada com você, Isi... - ela parou de falar quando Robert surgiu atrás de mim.
- Hã, Lena, este é Robert Castro, lá da escola. Robert, esta é Helena, minha irmã!
Não sei dizer exatamente o que passou pelo rosto de Lena quando Robert surgiu em sua
frente. Ela parecia estar em choque. Pensei que isso, muito provavelmente, se devia ao fato dele possuir uma beleza estonteante, era difícil não ficar em choque diante daquele rosto.
Entretanto, havia algo mais. Os olhos de minha irmã brilhavam estranhamente. Lena não parecia apenas aturdida com a beleza quase sobrenatural de Robert, aliás, como percebi, depois de encará-la um segundo, ela parecia nem se importar para o quanto ele era bonito.
Seus olhos analisavam-no com cautela, dissecando minuciosamente cada pedacinho dele, buscando por alguma coisa que eu nem conseguia imaginar o que era.
- Muito prazer! - disse Robert educadamente, o traço de um sorriso nos lábios. Ele pareceu perceber a expressão cautelosa de minha irmã, pois seu rosto estava de repente tenso.
- Então era com ele que estava? - perguntou, cheia de autoridade, encarando-me. Sua voz era fria, distante e formal demais.
- Sim, estávamos fazendo um trabalho do colégio. - Robert respondeu por mim. Mantive a boca fechada, mesmo sabendo que o que ele dissera não era exatamente verdade. - Depois fomos dar uma volta de bicicleta e acabamos nos esquecendo da hora, o que nos fez pegar chuva no caminho. - ele deu de ombros, desculpando-se. Lena me olhou, acho que esperando que alguma coisa em minha expressão desmentisse a história.
- É melhor tirar essas roupas molhadas, Ísi, e tomar um banho quente. - foi o que ela disse antes de, quase, fechar a porta na cara de Robert. Por sorte consegui dizer "um até amanhã" e ouvir sua resposta de confirmação.
__ O que foi isso? - perguntei quando Lena sentou-se em sua poltrona e ligou a televisão. Ela me encarou fingindo não me entender. Eu detestava quando ela fazia isso. - Por que você tratou Robert com toda aquela rispidez? - a indignação e, sim, ressentimento, escorriam em cada uma de minhas palavras.
Lena apertou o botão de "mudo" do controle remoto e voltou a me encarar.
__ Sabe que ainda não terminei meu sermão sobre você não ligar pra avisar aonde estava, chegar em casa toda molhada e depois do horário da escola, não sabe? - ela apontou o
controle para televisão, mas continuou com os olhos em mim.
__ Vou tirar essas roupas molhadas e tomar um banho quente! - resmunguei, entendendo que eu supostamente não tinha nenhum direito a fazer perguntas naquele momento.
Ouvi o som da TV quando cheguei ao corredor.

Os dias que se seguiram foram gloriosos. Marcos parecia, finalmente, ter aceitado a ideia de que Robert e eu precisávamos passar algum tempo juntos por causa do trabalho; Beatriz havia dado uma trégua em suas confissões amorosas, ela estava ocupada demais trabalhando com o Willian, o que era maravilhoso; Amanda encarava-me o tempo todo, durante todas as aulas em que éramos da mesma turma, havia tanto ódio em seu olhar que não dava para simplesmente ignorá-la. Tentei ser simpática e lhe sorri algumas vezes, não posso dizer que
funcionou. Tevi Cheng ajudou-me a estudar para o teste de Geografia e por isso tirei uma das melhores notas da turma, não sei se poderei agradecê-lo devidamente um dia. Fernanda, uma das Barbies do bando da Amanda, surpreendeu-me, perguntando na educação física se eu gostaria de fazer parte do seu time de handball. Aceitei, com certa cautela, confesso.
Recebi uma carta de Sara contando as últimas novidades - meus pais ainda não haviam matado um ao outro, mas brigas continuavam. Escrevi-lhe de volta dizendo que apesar de nossa distância, eu começava a sentir-me levemente feliz por ter me mudado, começava a entender que talvez as coisas realmente tivessem que acontecer dessa maneira.

Querida Sara,
Tenho sentido tanto sua falta...
Queria poder te abraçar agora e te ouvir dizer que é só uma fase. Que tudo isso vai
passar e em breve estaremos juntas outra vez.
Queria, pelo menos, poder ter certeza de que você está feliz...
Ás vezes me sinto tão egoísta, amiga. Quando me pego sorrindo e me divertindo
com as pessoas que conheci aqui. Sinto como se eu estivesse te traindo, como se eu estivesse te deixando para trás... Me perdoe, Sara, por favor! Mas ultimamente tenho me sentido tão... feliz, como jamais me senti antes. É sério. É tanta felicidade que me assusta, nem parece real.
Chego a pensar que talvez as coisas tivessem mesmo que mudar dessa maneira, que talvez Campos não fosse mesmo o meu lugar no mundo... ah... mas se não é o meu, também não pode ser o seu, porque ainda acredito que nosso lugar é pra sempre junto uma da outra.
Me escreva logo, está bem? Quero saber de você, e seja sincera, por favor, não me
venha com mais uma carta impregnada de falso entusiasmo pela vida. Saberei se estiver mentindo.
Beijos, te amo!
Ísi.

Voltei ao Lar Santa Inês e seu João tinha algumas poesias para serem transcritas em seu caderno. Ele era realmente muito bom com as palavras. Georgina pareceu-me meio
enciumada ao me ver dando atenção ao seu João. Quando ficamos sozinhas, enquanto
dávamos um passeio pelas ruazinhas do jardim da fonte, ela disse que não gostava dele , e que não era uma boa ideia que eu passasse tanto tempo na companhia de um velho metido a intelectual, que eu devia gastar esse tempo com ela.
Em casa eu via Lena com uma frequência cada vez menor, não que ela estivesse trabalhando mais. Mas porque todo tempo que tinha fora do hospital e do asilo era dedicado exclusivamente a Jéssica. Não vou negar que senti uma pontada de ciúmes algumas vezes, mas não podia culpar Lena, a sobrinha de Marcos era realmente uma criança cativante. Lena costumava levá-la para passear na lagoa Rodrigues de Freitas. Às vezes Suzana ia junto, até mesmo Marcos e eu chegamos a acompanhá-las num dos passeios. Jéssica poderia ser filha da
minha irmã, se não tivesse todos os traços físicos de Suzana. Acho que a semelhança física era a única coisa que deixava bem claro que Jéssi pertencia a Suz, pois o restante dela pertencia inteiramente a Lena.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now