11. Os Sofrimentos do Jovem Werther (II parte)

3.8K 373 44
                                    

Saímos do apartamento e subimos todas as escadas até o último andar - o elevador ainda estava em manutenção. No oitavo andar, seguimos até o fim do corredor, onde havia uma porta vermelha de ferro, com uma placa que dizia "Entrada Proibida", mas que estava sempre destrancada. A porta nos conduzia a mais alguns lances de escadas. Subimos apostando corrida e estávamos ofegantes quando finalmente chegamos ao terraço do prédio - bom, na verdade eu estava ofegante.
- O que viemos fazer aqui? - disse Robert, a respiração controlada.
- Já vai saber o que é!- respondi, tentando manter a respiração também. - Vamos!
Robert me seguiu sem fazer mais nenhuma pergunta.
No final do terraço, no lado sul, havia um pequeno depósito e uma escada que dava acesso ao topo dele.
- Mais escadas? - resmungou ele, quando eu comecei a subi-las.
- Pare de reclamar e suba logo! - eu disse, com humor na voz.
Subimos os quase quatro metros de escadas. Não foi uma atividade fácil, a escada de ferro era presa verticalmente na parede do depósito, o que dificultava ainda mais nossa subida.
Quando chegamos ao topo, escolhi um lugar e me deitei de costas no chão, encarando o céu.
A tarde estava calma, o céu de um azul delicado, porém profundo, algumas nuvens alvas e fofas deslizavam naquela imensidão incrível.
Robert pareceu hesitante, mas, sem dizer nada, deitou-se ao meu lado também.
- Sobre o que mesmo estávamos conversando? - perguntei calmamente, encarando o céu.
- Nossa! - Robert estava admirado. Apesar de estarmos num prédio não muito alto, o céu, ainda assim, parecia estar há poucos metros acima de nós, uma imensidão magnífica. - Acho que já entendi sua intenção por trás da sua ação. - disse ele, olhando fixamente o abismo acima de nós.
Fiquei em silencio por um instante, deixando que Robert absorvesse o momento, que sentisse o mistério e a beleza que pode haver por detrás de qualquer tarde como aquela.
- Consegue sentí-Lo? - perguntei, depois de alguns minutos, fechando os olhos.
Robert suspirou.
- Acredita mesmo que olhar o céu... basta para sentir Deus?
Abri os olhos e respirei fundo.
- Não se trata do céu Robert, trata-se do momento que você dispõe para observá-lo. - comecei num sussurro. - Poderia ser uma flor, uma árvore ou até mesmo sua própria imagem diante do espelho. Não importa, o que importa é o momento que você gasta para realmente observar as coisas, sentí-las, entendê-las e apreciá-las. Você olhou para o céu agora e ficou admirado, no entanto, se estivesse lá embaixo, na correria da vida, e por um impulso olhasse para cima,
certamente não veria este mesmo céu, apesar dele continuar sendo o mesmo. Você estaria olhando para cima, e não olhando para o céu...
Ele me interrompeu.
- Então devo subir toda noite no telhado? - resmugou, ao meu lado.
- Você não entendeu nada do que eu disse? - arfei. - Não se trata da coisa em si, mas do momento que se gasta com ela. Você pode subir toda noite no telhado para observar o céu durante um mês, provavelmente não o achará tão fascinante no final dos trinta dias. O momento perderá o seu valor, pois o ser humano tende a se acostumar com tudo. O que à primeira vista parecia um milagre, de tanto olhar, você acaba por se convencer de que é apenas consequência da vida.
- Como ver o mar pela primeira vez e depois mudar-se para a praia? - indagou ele, numa espécie de conclusão.
- Exatamente! - concordei. - No início, a imensidão de águas te fascina, você aproveita cada instante que tem para contemplar a paisagem, mas, com o tempo, o mar já não parece mais tão impressionante de fato, não parece mais um milagre.
- Entendo! - murmurou ele consigo mesmo.
- Da mesma forma, o que no começo era visto como uma tragédia e caos total, pela
convivência, torna-se rotina.
- Como nos países que estão constantemente em guerra. - afirmou, ele havia entendido meu ponto de vista. - No começo a dor e o desespero são constantes, mas depois...
- As pessoas se esquecem da dor, pois ela já faz parte de suas vidas. - emendei.
- É, acho que você tem razão! - concordou ele pensativo.
Eu ri baixinho ao seu lado.
- O que foi?
- Não. Não tenho razão - admiti.
Robert pareceu confuso. Pude perceber pela sua respiração repentinamente irregular.
- Como não tem razão? O que você acabou de dizer faz bastante sentido. É sempre a mesma coisa, as pessoas acabam se acostumando ou se conformando com tudo aquilo que no início era tão espantoso e novo para elas...
- Preste atenção. - eu disse interrompendo-o, enquanto fitando o céu para não me
desconcentrar. - Existem dois tipos de ser humano dentro de cada ser humano. O primeiro, é o que eu acabei de descrever, aquele que acaba se conformando com uma situação que no início o fascinava ou o assustava, aquele que faz o caos ou o milagre tornarem-se rotina.
__ E o segundo? - ele parecia ansioso.
__ O segundo é aquele que, ao subir no telhado durante um mês para observar o céu, ficará tão fascinado que, ao final dos trinta dias, buscará uma maneira de dividir com o resto do mundo a riqueza e beleza daquele momento. Buscará uma forma de fazer com que outras pessoas sintam o que ele sente, uma forma de fazer com que o milagre não perca seu valor. Você só precisa escolher um deles... e ser!
Robert sorriu e ficamos em silêncio por um longo tempo, contemplando o céu que perdia sua cor gradativamente. Era uma visão esplêndida.
- Estes são os olhos de Deus - murmurei. - Como Ele não veria a todos estando em todos os lugares ao mesmo tempo? Como não estenderia a mão a todos que Lhe pedem ajuda, tendo um coração maior do que este céu que vemos? As pessoas sofrem e colocam a culpa em Deus, as pessoas morrem e a culpa é Dele. Furacões, tempestades, tremores de terra, tudo é culpa de Deus... É tão fácil apontar um culpado, não acha? Tão fácil fingir que somos o lado mais frágil, quando na verdade sabemos que temos todo o poder para destruir tudo isso daqui. - fz um movimento vago indicando o espaço a nossa volta.
Robert permanecia em silencio ao meu lado, ouvindo cada palavra com atenção. Eu queria parar de falar, tinha medo de estar passando por tagarela, mas, de repente, era tão confortável estar novamente podendo me abrir com ele. Era como se ele me fizesse trazer a tona tudo aquilo que estava dentro de mim e que eu mesma desconhecia.
- Não sou religiosa, sabe. - senti que ele me encarava com uma curiosidade quase excessiva, e ignorei os impulsos frenéticos de meu coração. - Bom, meus pais praticamente me obrigaram a freqüentar a igreja, pelo menos aos domingos, durante um bom tempo, mas então, quando completei quinze anos, tomei coragem para me "rebelar". Eles não tinham o direito de me forçar a acreditar no que quer que fosse, quero dizer... esse é o tipo de coisa que a gente deve decidir por si só, não é?
- Mas você acredito em Deus! - era uma afirmação.
Respirei fundo.
__ Eu busco! - corrigi. - Pode parecer meio maluco, mas... eu sinto Deus na flor e na chuva que cai, nas nuvens e nas estrelas do céu. Sinto no riso e nas lágrimas das pessoas, e até na pobreza e na tristeza do mundo eu posso senti-Lo. Eu sinto Deus tão próximo de mim no meu silencio. É mais que o centro de tudo, entende? É mais do que se sentir parte do universo. É saber que, independente de qualquer escolha, de qualquer decisão, mesmo que a mais errada, Ele estará lá pra você, estará lá com você. O céu não deixará de ser céu, mesmo que você não queira olhar para ele; a flor não deixará de ser flor, mesmo que você não queira inspirar o seu perfume; Deus não deixará de ser Deus, e de nos amar, mesmo que a gente não queria ou não saiba como chegar até Ele. Ele já está em tudo, basta sermos sensíveis o suficiente para enxergá-Lo e senti-Lo!
- Nossa, de onde você saiu? - zombou Robert de leve. - Com a sua idade, a maioria das garotas está mais preocupada em sentir outras coisas.
Me virei para encarar o rosto dele.
- É, eu sei! - concordei embaraçada.
- Acho que é por isso você é tão incrível, porque não é comum. - sussurrou ele, me olhando.
"Esses olhos!"
Levantei-me e caminhei até a fachada amarela de segurança, debrucei-me sobre ela, olhando a rua a mais de oito andares de distância.
Eu, definitivamente, tinha que cortar essa coisa de delirar sobre tudo o que ele me dizia. Com certeza ele não havia dito nada daquilo com o entusiasmo que meus ouvidos receberam.
- Às vezes ajudaria um pouco... ser comum, sabe? Ser como o resto do mundo. - murmurei vendo "o resto do mundo" caminhar apressadamente lá em baixo. - É meio difícil tentar pertencer a um ânodo quando se é um ânion.
Robert riu, já ao meu lado.
- Boa metáfora - ele disse, também observando a rua distante e movimentada. - Mas discordo dela.
- Ah, é?
- É!
- E por que discorda? - eu o encarei de lado.
- Bom, definitivamente você não pode ser a energia negativa. Não mesmo.
Ele me olhou por um breve instante, depois voltou a encarar a rua.
- Tem uma metáfora melhor? - desafiei.
- Na verdade tenho. - disse, aceitando o desafio. - Mas esqueça o ânodo. Vamos ficar apenas com o ânion, certo?
- Certo! - concordei debochada.
- Bem, eu diria que você é um próton deste ânion! A energia positiva de um mundo
negativo.
- É uma boa metáfora, mas você deve saber que sou um próton com tendências a elétron - confessei escondendo a amargura da voz. Depois soorri de leve e apontei pra ele - Mas e você? Próton ou elétron? - indaguei.
Ele pensou por um momento, o rosto sério demais, uma ruga de estresse marcando sua testa.
- Acho que sou um nêutron. - sussurrou, com um suspiro de desgosto que não entendi.
- Não pode ser um nêutron, seria fácil demais. - eu disse, tentando entender suas expressões que quase nunca me revelavam alguma coisa concreta.
- Tudo bem! - seu rosto se suavizou de imediato. - Então acho que sou um... ânion
tentando pertencer a um ânodo. - ele estava sorrindo, enquanto eu o encarava com uma expressão falsamente indignada por ter sido plagiada.
Era bom poder conversar com Robert, poder dizer o quanto eu me sentia desgarrada do
mundo. Era fácil ser eu mesma quando estava com ele, abrir meu coração, deixar fluir a Heloísi verdadeira que existia dentro de mim, a Heloísi que apenas Sara conhecia. Era meio estranho, mas Robert parecia sempre saber como eu me sentia.
Às vezes parecia que havia algum tipo de conexão anímica entre nós. Algo simples, porém intenso demais. Algo que eu jamais saberia explicar.
Estava ficando tarde e logo minha irmã voltaria pra casa. Eu não via problema nenhum em Robert continuar ali, e até, quem sabe, ficar para o jantar, mas ele disse que não seria uma boa idéia, e eu me lembrei da expressão da minha de Lena quando os apresentei no outro dia. Talvez ele tivesse razão, não seria uma boa idéia.
Eu o acompanhei até a porta do prédio, e não consegui desgrudar os olhos do jipe até ele desaparecer de vista.
Voltei para o apartamento me sentindo sozinha, mas estranhamente feliz.
Lena chegou do hospital e me levou para jantar no Sugoi, um restaurante japonês perto de casa.
O lugar era pequeno e aconchegante, uma música agradável tocava ao fundo. Ela me
contou sobre o seu dia e quis saber um pouco sobre o meu, enquanto comíamos.
Contei-lhe algumas coisas, mas não falei sobre a visita de Robert, não achava que fosse realmente necessário.
Voltamos pra casa logo depois de comer, e, como eu não tinha dever de casa, fui pra cama cedo, mas não consegui dormir com a rapidez que pretendia. Fiquei acordada até tarde da noite, olhando para o vazio do teto escuro, ruminando cada palavra, cada olhar, cada sorriso...

O dia seguinte na escola foi normal. Entediante e lento antes o almoço; cheio de olhares e suspiros durante o almoço e, claro, cheio de expectativas e ansiedade após o almoço, basicamente o de sempre. Mas, felizmente, dessa vez minhas expectativas foram atendidas.
Depois da aula, Robert levou-me até Lagoa. Tínhamos combinado de continuar a leitura do nosso livro.
Eu gostava daquele lugar, gostava ainda mais da ideia de estar ali com ele. As alamedas asfaltadas e ladeadas por árvores que dispunham suas sombras por toda parte, o lago imenso de água verde amarelada, onde patos e tartarugas refrescavam-se diariamente, os
bancos espalhados pelo caminho, as crianças brincando na grama, pessoas passeando com seus cachorros ou andando de bicicleta, o vento batendo nas folhas das árvores produzindo um som muito familiar aos meus ouvidos.
A vida ali parecia mais fácil, mais leve. As pessoas estavam sempre sorrindo, esquecidas por um momento de seus problemas diários.
Escolhemos um dos decks as margens do lago para nos sentar. A tarde estava abafada, no sentido de quase desagradável, embora o sol não estivesse tão forte assim, o que era realmente algo espantoso para mim. Algumas nuvens rasas davam ao céu um pouco mais personalidade.
Pessoas caminhavam pelas alamedas, crianças andavam de bicicleta, um casal passou por nós,indo sentar-se num dos bancos próximos de onde estávamos. Eu provavelmente os teria notado de qualquer maneira. A garota devia ter uns vinte anos, tinha cabelos pretos e compridos, usava um moletom branco com o zíper fechado até o pescoço, mesmo fazendo quase uns 37 graus; seus olhos eram negros como os cabelos e as bochechas salientes com uma leva cobertura de blush. O garoto devia ter por volta de vinte e cinco anos, cabelos ruivos e
crespos, olhos azuis e sardas cobrindo o nariz. Ele usava uma jaqueta preta de couro, uma dessas jaquetas de motoqueiro. Os dois exalavam uma elegância pouco natural. Mas não foi o moletom dela, a jaqueta de couro dele, ou ainda a elegância latente que exibiam que chamou
minha atenção.Não. O que me prendeu a eles foi o fato de que não paravam, não paravam mesmo, de encarar a mim e a Robert.
Sentados a poucos metros de distância, seus olhos não se desviavam para nenhuma outra direção que não fosse a nossa. Eles nem ao menos conversavam, apenas ficavam lá, imóveis, nos observando.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now