34. A Festa

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Seguimos pelo jardim de entrada, caminhando por uma ruazinha de pedregulhos, ladeada por arbustos milimetricamente podados. À medida que nos aproximávamos, a música, vinda do interior da casa, tornava-se mais distinta e alta aos nossos ouvidos.
Chegamos à varanda de entrada, e havia ali algumas pessoas conversando, rindo e bebendo em copos vermelhos descartáveis. Todos nos olharam com curiosidade, surpresa e total espanto. Certamente não esperavam nos ver ali. Eu era a alienígena caipira e Robert o anti-social traumatizado. Tenho certeza de que fiquei vermelha de imediato, mas Robert cumprimentou a todos educadamente - eles também não esperavam por isso -, eu me restringi a apenas sorrir e manter os olhos grudados em meus próprios pés.

Entramos.

O interior da casa fervilhava de adolescentes dançando, rindo e bebendo. A música, agora alta demais, vinha dos fundos da sala principal que havia sido transformada em pista de dança. Atrás de uma dessas mesas cheias de parafernálias eletrônicas, estava um DJ, tocando músicas barulhentas e com letras que consistiam na repetição exaustiva de meia dúzia de palavras, mas que, apesar de tudo, pareciam agradar a grande maioria presente.
A decoração era um exagero à parte. Dezenas de luminárias grandes e redondas estavam espalhadas em lugares estratégicos, véus de tule pendiam do teto e fumaça de gelo seco subia do chão, criando tudo junto uma atmosfera quase irreal. Juro que tive vontade de sair correndo e voltar para o jipe, mas Robert me sorriu protetor, por isso fiquei onde estava.
- Queria poder segurar sua mão agora. - sussurrou ele em meu ouvido, enquanto
penetrávamos casa adentro. Seu hálito quente passou por meu cabelo, me causando arrepios.
- Isso seria muito bom! - respondi, minha voz tentando se sobressair à música.
"Seria maravilhoso, se pudéssemos estar agora de mãos dadas" , pensei, mas por mais de um motivo não poderíamos estar.
- Amanda sabe mesmo como dar uma festa, não é? - comentei, enquanto tentava não
esbarrar demais nas pessoas pelo caminho.
- Ela sabe mesmo como se aparecer! - corrigiu Robert. Eu ri, mas meu riso durou uma fração de segundos.
Vindo em nossa direção estava o bando das quase-Barbies, agora com uma integrante a mais, ou talvez, com o número certo de integrantes novamente.
- Ora, ora, ora, vejam só quem temos aqui! - cantarolou a loira deslumbrantemente bonita demais para ser humilde; a líder delas.
Amanda usava um vestido sem alças, carmim, que contrastava bem demais com sua pele, com seu cabelo, com seus olhos, e até com a projeção colorida de sua sombra no chão; o tecido agarrado ao corpo era muito insinuante. Imaginei o que os garotos deviam pensar quando olhavam para
ela dentro daquilo. Os sapatos de salto, scarpim preto envernizado, eram mais ousados do que os de uma modelo de passarela. Como ela conseguia manter-se em pé?
- Como vai, Robert? - Ah, ela disse o nome dele com tanto... desejo, que uma onda quente invadiu meu estômago.
Prendi a respiração para não fazer nada precipitado. Robert sentiu a intensidade da nova sensação e me lançou um olhar intrigado antes de cumprimentá-la.
- Muito bem! - disse ele, quase secamente. Fiquei feliz com a indiferença, mas Amanda não. Seu rosto retorceu-se de indignação. Ela não imaginava que, linda como estava àquela noite, Robert a ignoraria. Sua pompa diminuiu um pouquinho.
- Heloísi? - cumprimentou-me ela, o desprezo na voz. Seus olhos seguiram toda a extensão de meu vestido até chegar aos meus pés e voltaram para meu rosto em um segundo. Sorri como resposta, a voz entalada na garganta, não conseguia falar sob a pressão dos olhos da Barbie ao lado de Amanda.
Dentro de um vestido preto e também sem alças, em cima de sapatos quase tão altos quanto os de sua amiga, com os cabelos lisos e... loiros? caindo-lhe nos ombros, Beatriz olhava-me doentiamente.
Os olhinhos, antes, vez ou outra, gentis e alegres, agora encolerizados de ódio,
penetravam nos meus através da maquiagem carregada. O sorriso de passarinho escondido atrás dos lábios tingidos de vermelho sangue. Aquela não era a Beatriz que eu conhecia, e não era apenas
a tintura amarela no cabelo que mostrava a mudança, seus olhos eram o que de mais diferente havia naquele rosto. Eram olhos cruéis, rudes, insanos...
Beatriz desviou por um segundo o olhar para Robert e por um momento percebi que, apesar de toda mudança superficial, o olhar que ela lançava para ele permanecia o mesmo.
- Estão gostando da festa? - perguntou Amanda, os olhos voluptuosos vidrados em Robert.
- É uma festa na sua casa, não é? - respondeu ele, usando o slogan preferido da loira.
- A casa é de vocês esta noite! - quantas intenções havia naquelas palavras? - Então,
aproveitem!
- Obrigado! - Robert agradeceu, passando por elas e indo para o meio da multidão dançante, não sem antes virar-se para mim e dizer: - Vamos?
Olhei para Beatriz uma vez mais, porque, de alguma forma, eu esperava que ela ainda fosse me surpreender com uma reação negativa e inconsequente. Não dava pra acreditar que ela se manteria em silêncio, que se contentaria em me lançar olhares de ódio enquanto me via ao lado de Robert. Mas, para minha total surpresa, foi exatamente o que ela fez, apenas me encarou em silêncio, contrariando todos os meus temores de horas atrás.
Segui Robert, deixando nossa anfitriã e suas escudeiras para trás.
Atravessamos a "pista de dança" e, por sorte, avistei alguns rostos conhecidos e menos hostis. Tevi, Mel, Ana e Renan conversavam em um canto perto da escada, juntamo-nos a eles.
- Bela festa, heim? - Renan comentou animado, tentando disfarçar a surpresa coletiva por Robert e eu estarmos ali, juntos. Mel Cheng saiu pisando fundo, disse que iria buscar uma bebida, mas eu sabia que ela não voltaria, pelo menos não enquanto eu ainda estivesse presente. Ao que parecia, ela havia tomado as dores de Beatriz nessa história.
- Todas as festas de Amanda são sempre muito boas! - disse Ana, gabando-se um
pouquinho por já ter participado de outras exibições da Barbie.
- Eu estou achando o máximo. - disse Tevi. - É a primeira festa para a qual sou convidado na vida e isso é muito legal. - havia uma animação quase que exagerada nas palavras dele.
- É minha primeira festa também. - confessei, com bem menos entusiasmo. - Quero dizer, minha primeira festa de verdade. Antes eu só ia a festinhas de aniversário no meio da tarde,
com bolo, refrigerante e meia dúzia de convidados. Isso aqui é... bem diferente.
Robert me lançou um olhar presunçoso, afinal ele era o responsável por eu participar de minha primeira festa de verdade.
Ficamos conversando ali por um tempo, observando o alvoroço dos outros convidados. Não era o programa mais divertido do mundo, mas não chegava a ser tão ruim, principalmente porque eu podia observar Robert sendo Robert, e encantando todos ao seu redor enquanto se esforçava para ser simpático.
De repente a música passou da batida barulhenta para uma balada romântica e quase lenta. Vários casais começaram a se formar na pista de dança. Renan tirou a Ana para dançar e meu coração se apertou no peito quando Alex Corrêa surgiu do nada, e me fez o mesmo convite.
- Quer dançar comigo? - perguntou, cheio de atitude.
Meus olhos voaram para o rosto de Robert. Era claro que eu não queria dançar com Alex. Havia uma única pessoa presente naquela festa cujo corpo eu desejava ter junto do meu.
- Ah... - eu estava prestes a recusar quando Robert interveio.
- É claro que ela quer! - precipitou-se em dizer. Fiquei confusa e levemente irritada por ele estar me oferecendo de bandeja à concorrência. Fuzilei-o com os olhos, mas ele manteve o rosto sereno, a expressão inalterável.
- Uma festa não é uma festa de verdade se você não dançar! - explicou ele à minha
indagação silenciosa.
Então ele queria que eu me divertisse de verdade dançando com outra pessoa? Que diversão poderia haver nisso?
- Vamos? - insistiu Alex, estendo-me a mão educadamente.
- Eu não... sei dançar! - a desculpa mais manjada da história, mas a única que consegui pensar para me livrar do incômodo de ter que me afastar de Robert. Alex sorriu vitorioso diante de minha resposta. Minhas sobrancelhas se uniram para sua reação.
- Não importa. Eu danço muito bem! - anunciou cheio de si. Modéstia era uma palavra que não constava em seu dicionário.
Estendi a mão, derrotada, aceitando a de Alex, e segui com ele para o meio da pista. Encontramos um lugar vago no meio dos outros casais.
Alex desceu as mãos até minha cintura. Estremeci com a rejeição que meu corpo sentiu por aquele toque, eram as mãos erradas.
Instintivamente procurei por meu anjo através da multidão e lá estava ele, onde o havíamos deixado, ao lado de Tevi, com os olhos já esperando pelos meus. Havia um leve sorriso em seus lábios, mas seus olhos transbordavam dor e revolta quase tangíveis.
Robert sabia que era ele quem devia estar ali comigo, era ele que eu desejava que estivesse ali comigo.
- Está começando a me convencer! - disse Alex, reivindicando minha atenção. Encarei-o meio perdida com o comentário.
- Hã, te convencer de quê?
- De que não sabe mesmo dançar, pensei que estivesse usando isso apenas como desculpa para se livrar de mim. - ele sorriu. - Mas vejo que estava dizendo a verdade, não é?
Mantive os olhos em seu rosto e uma leve irritação comprimiu meus lábios. Quem esse garoto pensava que era pra dizer que não sabia dançar? Eu sei que não sei dançar, mas ele também não estava se saindo nenhum John Travolta, em Embalos de Sábado à Noite, para me criticar. Eu ainda nem havia pisado em seu pé.
- Você deve passar os braços em volta do meu pescoço! - cochichou o garoto irritante, antes que eu pudesse testar a potência de minha sandália e descobrir quanto estrago seu salto causaria em um pé desavisado. - Assim, Ísi. - Alex pegou minhas mãos e as colocou em torno de seu pescoço, me obrigando a abraçá-lo.
Era a pessoa errada.
Fiquei balançando desajeitada, tentando entrar no ritmo da música, mas não dava, mesmo com Alex afirmando sem parar que dançava muito bem. Não dava porque era uma dessas músicas indançáveis feitas apenas para se ouvir.
Felizmente não éramos o único casal que parecia ter quatro pés esquerdos e estar com dois deles amarrados, a maioria dos outros casais movia-se de forma vergonhosa, tentando se encaixar ao ritmo.
- Você está muito bonita! - comentou Alex, meu rosto queimou com o elogio.
- O-obrigada! - gaguejei. - Você também está muito... bem. - mas não chega aos pés
daquele garoto parado lá do outro lado, completei a frase mentalmente.
- Fico feliz que você tenha vindo. - falou, insinuando-se para mim. - Estava começando a acreditar que você realmente não viria - suas palavras eram um pedido de "obrigado por estar aqui."
- Pra falar a verdade ainda não acredito que realmente vim.
- Pelo menos valeu a pena insistir tanto com Amanda para que ela te fizesse o convite.
- Você disse para Amanda me convidar?
- Na verdade, eu praticamente a obriguei a isso, afinal essa festa seria bastante pedante sem você aqui, pelo menos para mim. - Havia um lampejo de prazer em seus olhos calorosos.
Qualquer outra garota cairia fácil-fácil nessa conversinha mole, nesse jeitinho de falar
meticulosamente charmoso, nesse sorriso largo de comercial de creme dental; qualquer garota que não tivesse provado dos encantos que superavam o mais conquistador dos caras. Felizmente eu havia provado, então a pose de galã do garoto que me encarava, enquanto balançávamos ao som da balada romântica e brega dos anos sessenta, não me convenceu.
Mas apesar de sentir-me indiferente aos galanteios de Alex, fiquei sem saber o que dizer.
Meus olhos buscaram os de Robert novamente, dessa vez com fúria. Além dele me persuadir a ir a essa festa e ter que enfrentar Amanda e Beatriz, ainda induzira-me a dançar com Alex e ter que ouvir o garoto tentando me paquerar. Ah, ele iria me pagar por isso!
- Robert não ficará com ciúmes por você estar dançando comigo, não é? - perguntou Alex, seguindo a mesma direção de meus olhos.
- Ah... espero que não. - espero que "sim", pensei - Somos apenas amigos e acho que
amigos não devem sentir esse tipo de ciúmes. Eu, por exemplo, não sentiria ciúmes se você
estivesse dançando com outra garota. - ah, a sutileza das palavras.
Alex riu.
- Então somos amigos? - perguntou decepcionado.
- Amigos! - confirmei, sorrindo para que o fora não fosse traumático.
- Apenas amigos? - enfatizou ele. Eu não devia ter sorrido.
- Você é um garoto legal, Alex. Gosto da idéia de poder me tornar sua amiga, apenas sua amiga. - às vezes é preciso dizer as coisas com todas as letras.
Alex ficou visivelmente desanimado com a falta de reciprocidade de sentimentos, mas eu sabia que isso não o afastaria de mim. O que era uma pena.
A música que dançávamos acabou e começou outra mais romântica e mais lenta ainda.
- Quer continuar dançando? - perguntou ele, ainda com um lampejo de esperança.
- Humm, acho que preciso de um descanso, não estou acostumada a dançar em cima dessas coisas - olhei para minhas sandálias Gucci, extremamente confortáveis, e quase me desculpei com elas por usá-las como álibi para voltar para o lado de Rob.
- Tudo bem!
Enquanto caminhávamos de volta, Alex manteve o braço direto sobre meus ombros, num meio abraço mais íntimo do que eu desejava. Seria indelicadeza se eu simplesmente o empurrasse para longe? Sim, acho que seria.
Os lábios de Robert estavam tensos, repuxados numa linha firme. Ele não aprovava a atitude de Alex. Seus olhos fixos nos meus evitavam olhar para a mão pousada em meu ombro. Ele estava com ciúmes. Tive certeza disso.
Renan e Ana voltaram logo em seguida e foi minha vez de crispar os lábios.
- Dança comigo? - perguntou Ana Paula a Robert.
Ao meu Robert.
Minha respiração acelerou e minha pulsação martelou com força em minhas têmporas. O que ela pensava que estava fazendo?
Ok, Robert era conhecido como o garoto frio e sem amigos da escola, não se aproximava de ninguém, e ninguém se aproximava dele. Até agora. Talvez o fato dele estar ali comigo, mostrava que ele não era tão inatingível assim, e Ana não pensara duas vezes antes de tirar proveito da situação.
- Você não se importa, não é Isi? - ela olhava para mim esperando confirmação. Renan, Tevi, Alex e Robert também me olhavam, esperando minha resposta.
Eu não queria que ele tomasse outra garota nos braços, mas se eu fizesse uma cena de ciúmes nosso disfarce estaria totalmente comprometido.
- Hã... não! - engasguei na mentira. - É claro que não. - tentei ser mais convincente. - Acho que ele deve mesmo dançar com você, afinal, uma festa não é uma festa de verdade se você não dançar, não é? - meus olhos estavam presos aos dele, enquanto eu repetia suas palavras.
Ana tomou Robert pelas mãos e praticamente o arrastou dali. Minha vontade foi de segurá-la pelos cabelos e dizer que ela não iria a lugar algum com o meu namorado. Mas, enquanto eu tentava me convencer se isso seria uma reação exagerada demais, Ana lançou um olhar todo cheio de entrelinhas na direção de Renan, e eu entendi tudo.
Tava na cara que ela estava fazendo aquilo para tentar provocar ciumes em Renan. Não sei dizer se funciounou com ele, mas posso afirmar que funcionou para mim.
Fiquei enjoada quando Robert colocou as mãos em volta da cintura dela, e ela passou os braços em torno do pescoço dele. Ah... eu quase não conseguia respirar vendo aquilo.
As mãos dela não sossegavam, deslizavam como serpentes pelos ombros, pela nuca e pelas costas dele. Eu queria ter uma serra elétrica e arrancar os braços dela do lugar.
Os outros garotos começaram a conversar, mas não consegui prestar atenção ao que diziam, minha concentração estava muito mais focada em onde Robert colocava suas mãos.
Revolta, tristeza, fúria, aflição... invadiam meu rosto enquanto eu os observava a distancia.
Aquilo era tão injusto. Era eu quem devia estar ali com ele, suas mãos em minha cintura, minhas mãos em sua nuca. Nós dois, juntos.
Robert evitava me olhar. Ele sabia que encontraria meus olhos desconsolados e eu sabia que ele não precisava olhar em meu rosto pra saber exatamente o que eu estava sentindo. Mais difícil do que ver o descontentamento em meu rosto era senti-lo comigo.
Ana ajeitou a gola do paletó de Robert. Foi um movimento automático, imperceptível talvez até mesmo para ela, mas não para mim, suas mãos deslizaram pelo tecido do colarinho, roçando de leve a pele do pescoço dele.
Ah! Não. Eu não iria suportar.
- Com licença! - murmurei para os garotos, entretidos demais em sua conversa para me dar qualquer tipo de atenção, a não ser Alex que me olhou curioso enquanto eu saía dali
transtornada, esbarrando em alguns casais que reclamaram de minha grosseria.
Fui parar ofegante na cozinha. Estendi as mãos sobre a pia e fechei os olhos, respirando fundo para manter o controle. "Eu o terei quando o dia começar a amanhecer. Eu o terei quando o dia começar a amanhecer...". - repeti mentalmente algumas vezes.
Eu ficaria escondida na cozinha até que as mãos dele estivessem livres da cintura dela, até que o pescoço dele estivesse livre das mãos dela. Olhar aquilo não era bom para mim.
Repeti meu mantra tranquilizador mais algumas vezes. Estava começando a funcionar. A ideia de ter os lábios dele nos meus em breve era mais do que reconfortante.
- Vestido bonito. De quem roubou? - virei-me sobressaltada na direção da voz familiar, mas levemente modificada pelo sarcasmo.
Senti o coração acelerando gradativamente e minhas pernas ficaram ligeiramente trêmulas.
Beatriz estava parada embaixo do arco da porta, olhando para mim como um cão selvagem. Um arrepio sinistro percorreu minha espinha, fazendo os pelos dos meus braços se arrepiarem.
Engoli em seco a surpresa e o pavor que me tomaram naquele instante, e sustentei seu olhar de pedra.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now