9. Brincando de bonecas (I parte)

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- Marcos e eu precisamos ir até o laboratório. - disse Beatriz entediada, no almoço do dia seguinte, antes de chegarmos a nossa mesa. - Você vem com a gente?
- Acho que vou ficar por aqui! - murmurei, a voz fraca, sem humor.
Robert não estava no refeitório.
Marcos me olhou contrariado enquanto se afastavam. Os dois estavam na mesma turma de biologia e precisavam fazer uma pesquisa sobre os ácidos ribonucléicos.
Eu não queria acompanhá-los e perder a chance de fazer novas buscas pelo refeitório.
Arrastei uma cadeira em nossa mesa e fiquei ali, os olhos vagando sem rumo, o coração
apertado.
- Olá, Heloísa! - disse uma vozdesconhecida ao meu lado. Olhei para ver de quem vinha e vi diante de mim Amanda Siqueira, com seu grupinho de seguidoras.
- Heloísi! - corrigi.
- O quê? - perguntou ela, surpresa por eu ter falado, como se eu não tivesse autorização para isso.
- Éh... meu nome é Heloísi... não Heloísa! - expliquei. Eu detestava quando as pessoas
faziam esta troca.
- Ah, tanto faz. - resmungou ela. - E então, parece que está mesmo se adaptando aqui, não é? - ela mantinha um sorriso simpático no rosto angelical, mas sua voz era cheia de sarcasmo.
- É, parece que sim! - concordei, tentando retribuir a suposta simpatia.
- É verdade que, de onde você vem, as pessoas plantam batatas nos fundos de casa, para sobreviver? - disse ela. Suas seguidoras e algumas pessoas das mesas ao redor, que de repente prestavam atenção a nossa conversa, riram alto da observação maldosa de Amanda.
- Não... plantamos batatas. - murmurei, numa tentativa infeliz de cessar todos os risos, mas acho que ninguém me ouviu.
- E é verdade que seu pai te levava para a escola numa carroça puxada por cavalos? - novos risos.
Por que ela se esforçava para sorrir, se sua voz era tão carregada de maldade? E por que aquelas pessoas estavam dando risada? Com certeza tinham uma idéia ultrapassada e ridículo sobre como era morar no interior. Pelo menos em Campos as coisas não eram bem assim.
Eu queria lhe dar uma boa resposta para essa garota. Uma resposta que a fizesse se arrepender por ter pensado em vir falar comigo, mas eu detestava qualquer tipo de cena, ainda mais se eu estivesse envolvida nela.
Não, eu não iria responder, apenas ouviria as "boas-vindas" que a Barbie me oferecia.
Eu sabia que aquilo tinha a ver com o fato de que eu estava fazendo o trabalho de literatura com Robert Castro.
- Gostei da sua saia. Você mesma quem fez? - mais risinhos.
Baixei a cabeça encarando a mesa. Eu esperaria até que ela resolvesse fazer algo melhor com seu tempo que não fosse me importunar publicamente.
- Como vai? - disse uma voz rouca próxima a mim.
Empalideci.
Robert chegara tão de repente, e já sentava diante de mim, com um meio sorriso nos lábios. De onde ele havia saído?
Fiquei muda com a surpresa.
- Ah... Robert... oi... eh... - Amanda hesitou, desconcertada, enquanto tentava cumprimentar Robert.
Ele virou-se para ela, erguendo os olhos para olhá-la.
- Eh... como... como vai? - Amanda gaguejava as palavras. Coitada, aquilo era constrangedor.
Por um momento senti pena dela, e quase entendi o motivo para Beatriz sentir o mesmo. Os olhos de Robert transbordavam uma indiferença fria e distante. Parecia que ele não havia notado a presença dela até aquele momento. E ele nem se deu ao trabalho de responder ao cumprimento, apenas acenou com a cabeça.
Ela continuou:
- Eu... estava dizendo para... Heloísa...
- Heloísi. - corrigiu ele.
- O quê? - Amanda estava tremendo ou seria impressão minha?
- O nome dela é Heloísi, não Heloísa! - Robert parecia impaciente.
- Ah, Heloísi, claro!
Espero que ela se lembre da próxima vez.
- Eu estava dizendo para... Heloísi... o quanto fico feliz por ela estar aqui com a gente, na escola! - o quê? Como ela conseguia dizer aquela mentira com tanta facilidade?
- É, também fico muito feliz com isso! - Robert mantinha uma voz quase rude, dura. - Podemos ir para a biblioteca? - pediu ele, virando-se para mim e ignorando completamente a presença de Amanda.
Como não sentir pena?
A expressão de humilhação estava estampada no rosto daquela garota quando nos levantamos e começamos a caminhar para longe dali. Ela estava quase chorando.
Devo confessar que me senti triunfante por fazer parte daquela cena, mas minha alegria durou pouco, logo percebi o que de fato estava acontecendo ali.
Provavelmente Robert achava Amanda deslumbrante, o que não seria nenhuma novidade, entretanto ela era muito presunçosa, então ele a ignorava, apenas para ocultar algum sentimento mais íntimo que provavelmente alimentava por ela em segredo.
- O que Amanda queria com você? - perguntou Robert, quando nos sentamos em uma das mesas da biblioteca, a última do lado esquerdo.
Despertei de minhas suposições malucas.
- Humm... acho que ela só queria exibir-se um pouquinho, sabe? Marcar território... - dei de ombros. Não queria gastar o tempo que tinha com ele falando dela.
Talvez ele tenha percebido isso, porque começou a falar sobre sua busca pelo livro ideal para nosso trabalho.
- Pensei em alguma obra de Shakespeare, mas acho que será muito clichê!
- Clichê demais, - concordei. - Não que eu não goste do autor, ele é demais, incrível
mesmo, mas...
- Mas com certeza metade da classe escolherá um de seus livros, não é?
- "Romeu e Julieta"! - enfatizei.
- E "Sonho de uma noite de verão", não se esqueça! - completou ele.
- Ah sim. Como não? - concordei veementemente.
Nós dois rimos.
- Eu queria algo que fosse clássico, porém original, sabe? - comentou ele pensativo.
- Bom, se quisermos ser classicamente originais - eu disse - devíamos apostar nos contos infantis. As opções são vastas: Esopo, La Fontaine, Saint Exupéry...
- "O pequeno príncipe" seria interessante, a "Raposa e as uvas" também! - zombou ele.
- "A Princesa e a Ervilha" daria um bom trabalho! - argumentei fingindo levar a ideia a sério. - dona Celina disse que não importava o autor, gênero, ou ano... Pelo menos seríamos os únicos a não falar de Shakespeare! - assinalei.
Robert sorriu dando de ombros. Ele não sorriria se soubesse o quanto isso me desconectava do mundo.
Ficamos na biblioteca especulando sobre dezenas de livros, até entrarmos em um consenso.
- Já leu "Os Miseráveis"? - perguntou ele pensativo.
- Claro, eu tenho um exemplar. E acho que seria uma boa opção para o trabalho.
- Então acho que já encontramos nosso livro! - ele estava animado.
O sinal tocou e eu nem havia percebido o tempo passar. O horário de almoço havia se
reduzido a um único minuto que passara rápido demais para o meu gosto.
Robert me acompanhou até a sala de Geografia.
- Até mais! - murmurei antes de entrar. Ele não respondeu, pelo menos não com palavras. Lançou-me apenas um lindo sorriso e isso bastou para aquecer completamente meu coração pelo restante da tarde.
Na saída eu o vi apenas de longe. Marcos e eu havíamos trancado nossas bicicletas distante demais do carro dele, então não seria conveniente me despedir mais do que com um aceno de cabeça, a menos que eu não me importasse em berrar um "até amanhã" no meio do estacionamento fervilhando de alunos - eu me importava.
- Como foi seu dia? - quis saber Marcos, enquanto pedalávamos para casa.
- Bom. - respondi simplesmente.
Não queria parecer evasiva, mas era involuntário.
- Te procurei depois que saí do laboratório. Onde estava? - ele estava se esforçando ao
máximo para não parecer possessivo.
- Fui até a biblioteca. - minhas respostas eram automáticas.
Ele respirou fundo.
- O que vai fazer quando chegar em casa?
- Tenho um questionário imenso de Geografia para responder e depois quero ir direto pra cama, o dia foi cansativo.
- Acabou de dizer que teve um dia bom e agora ele já se tornou um dia cansativo?
- É... bom é a palavra que uso para definir coisas que não são excelentes. Prefiro usar bom do que algo como: péssimo ou horrível, essas palavras uso apenas em casos extremos - saída pela direita.
Esperava que Marcos aceitasse minha explicação sem muito sentido. Eu não queria ter que explicar a ele que meu dia havia sido maravilhoso pelo simples fato de ter passado alguns minutos ao lado de Robert Castro. Ele piraria com isso, e me daria um sermão que eu não estava interessada em ouvir. Então me obriguei a ofuscar todo brilho de meus olhos, pelo menos durante o tempo que estivéssemos juntos.
Assim que coloquei os pés para dentro do apartamento, meu celular tocou dentro da mochila.
- Oi, Beatriz! - eu disse, tentando parecer animada com a ligação, eu havia lido o nome dela na tela antes de atender, e isso já me deixou preocupada.
- Isi, preciso te pedir um favor.
- Claro, o que é? - respondi rápido demais e logo pensei que poderia me arrepender por isso.
- Se amanhã o Willian te perguntar com quem você passou a tarde de hoje, diga que foi comigo, certo?
- Tudo bem, mas por que é mesmo que vou dizer isso a ele?
- Ah, aquele garoto acabou de me ligar. Disse que queria passar aqui em casa para me entregar o livro que usaremos no trabalho, vê se pode?
- Qual o problema?
- Ísi, por favor, ele pode muito bem me entregar o livro amanhã na aula! - eu ri da irritação dela. - Eu disse para ele não vir porque eu estaria na sua casa... bom, não sei se ele acreditou em mim, mas não importa, amanhã eu pego o tal livro! - resmungou Beatriz impaciente.
- Que bom que vocês encontraram um livro. - comentei.
- É, na verdade foi ele quem escolheu. Disse que é um ótimo livro e blá blá blá. Você não
sabe como aquele garoto gosta de falar. Ah, ele me irrita...
Eu ri novamente, indo para o quarto.
- Qual o título? - perguntei, para evitar que ela começasse desfiar um rosário de injúrias
sobre o pobre coitado do garoto.
- Não me lembro direito. Acho que é alguma coisa como "Os Coitados", " Os Pobrezinhos", ah, sei lá...
- "Os Miseráveis"? - presumi.
- É, acho que é mais ou menos isso. Você já leu?
- Hã... já, e Willian tem razão, é um livro muito bom. - tão bom que Robert e eu também o escolhemos para o trabalho, emendei em pensamento.
Beatriz e eu conversamos mais um tempo sobre trivialidades femininas. Ela insistia em dizer que precisava emagrecer urgentemente e eu discordava disso. Desliguei o telefone ainda tentando convencê-la de que estava no peso ideal.
Fui pra minha cama depois de atirar os tênis num canto. Era muita coincidência ou muito azar que Beatriz e seu parceiro tivessem escolhido o mesmo livro que meu parceiro e eu? Com tantos livros no mundo, tinham que escolher justamente este?
Robert e eu teríamos que fazer algumas mudanças de plano...
De repente senti uma incrível necessidade de pedalar. Calcei os tênis de volta e disparei para fora do apartamento, sem me perguntar de onde exatamente vinha aquela necessidade - eu já sabia.
Segui para o leste do centro e entrei na autoestrada pedalando a toda velocidade, ignorando totalmente a voz em minha cabeça que me dizia para não fazer aquilo.
Eu não podia esperar até a manhã seguinte e avisá-lo na escola. Eu precisava avisá-lo naquele momento.
Foram pelo menos trinta minutos de pedalada - eu me lembrava muito bem o caminho. As árvores acompanhando a estrada, as casas silenciosas escondidas por entre troncos e folhas, a estradinha com sua curva sinuosa que guardava uma construção quase sorridente.
Parei ofegante na entrada da casa e de repente toda urgência de contar a ele sobre a mudança de planos havia desaparecido, deixando apenas a impressão de que eu usara aquilo como desculpa para vê-lo.
Eu quis voltar correndo, mas... não, eu precisava avisá-lo.
Precisava vê-lo.
Deixei minha bicicleta no jardim da frente e caminhei até a porta de entrada da casa principal.
Um pé na frente do outro, lutando para não fazer meia volta. Respirei fundo e deixei que meu cérebro cumprisse suas funções, mandando estímulos para que meu braço se estendesse e meu dedo indicador tocasse a campainha.
Esperei ansiosa pela imagem que me atenderia.
- Oi... Sofia! - murmurei quando a garota me atendeu. Não era bem a imagem que eu
esperava.
- Oi, Isi! - ela ficou feliz ao me ver, mas havia uma interrogação saltando-lhe dos olhos.
- Éh... seu irmão está em casa? - perguntei à garotinha que me olhava desconfiada por entre a porta.
Ah! O que eu estava fazendo ali?
- Não, - disse ela, os olhinhos estreitando-se para mim - ele foi até o centro da cidade
comprar algumas coisas.
- Ah... que pena, quer dizer, tudo bem eu falo com ele amanhã na escola. - minha decepção era palatável, e o gosto não nada era bom. - De qualquer forma, obrigada. - eu disse, pronta para voltar pra minha bicicleta.
Sofia segurou-me pela mão, antes que eu pudesse começar a caminhar pela saída.
- Por que não entra e espera? - sugeriu, dando vida a uma ideia absurda e adorável.

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