8. Damas

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Assim que terminamos de arrumar as peças no tabuleiro, Robert pensou por um momento e então deu início à partida.
- Sua vez! - disse cauteloso, após mover uma das pedras da linha de frente.
Enquanto ele pensava em qual pedra mover, eu fazia o mesmo, de modo que, quando ele
anunciou que era minha vez, não hesitei.
- Eu sei! - respondi, movimentando uma pedra e sorrindo para ele.
Robert ficou apreensivo com a minha jogada rápida demais.
Nós dois sabíamos que evitaríamos as pedras um do outro pelo maior tempo possível, mas
também sabíamos que em algum momento o confronto seria inevitável. Talvez por esse
motivo houvesse uma tensão extasiante no ar a nossa volta.
Tentávamos prever as jogadas um do outro, e ficamos alí durante alguns minutos brincando de gato e rato com as peças daquele jogo. Movíamos nossas pedras exatamente para o lado oposto ao do 'inimigo'. Tinha espaço suficiente no tabuleiro para não nos enfrentarmos tão
cedo e a cada pedra movimentada nós nos olhávamos com intensidade, o que fazia meu coração se apertar dentro de mim. Eu não devia ficar fantasiando flertes entre nós a cada vez que as nuvens em seus olhos trovejavam lindamente para mim.
Tentei manter minha total concentração no jogo, ignorando cada gesto vindo da parte de
Robert, evitando suspirar a cada sorriso de triunfo que ele me lançava quando conseguia mover sua pedra com êxito. Eu precisava focar minha atenção em qualquer coisa que não fosse ele...
E então o inevitável aconteceu.
- Humm! Acho que tenho direito a uma pergunta! - eu disse com prazer.
Inacreditavelmente Robert havia perdido uma peça, e eu teria que lhe fazer uma pergunta.
Mas qual?
Fiquei tão preocupada em não perder nenhuma pedra, tão concentrada em não flertar involuntariamente, que nem ao menos pensei em alguma coisa para lhe perguntar. E na falta de algo interessante, soltei:
- Qual sua cor favorita?
Robert pareceu um pouco surpreso com a pergunta.
- Nossa! - disse por fim.
- O que foi?
- É essa sua pergunta? - ele parecia decepcionado.
- Tenho muitas outras a fazer, então acho melhor deixar as mais difíceis para o final. - que boa desculpa, agora eu teria de pensar em boas perguntas de verdade.
- Talvez você não tenha outra chance. - retrucou ele me encarando.
- Eu sei que terei. - garanti sorrindo, sustentando seu olhar.
- Verde, - respondeu ele desviando os olhos para o jogo - minha cor favorita é verde -
completou quase num sussurro.
Senti-me uma idiota, pela pergunta e por ficar encarando-o como uma maníaca. Relutante, desviei os olhos também.
- Qual seu filme preferido? - disse Robert de repente, de repente demais.
- O quê? Como você fez isso? - ele havia ganhado uma peça minha com uma rapidez
incrível.
- Tática de jogo. - ele estava sorrindo. - Eu disse que talvez você não tivesse outra chance. O jogo agora é pra valer. - seus olhos brilhavam.
- Você roubou! - acusei, perplexa com a rapidez com que ele fizera aquilo.
- Não ofenda minha capacidade, quando você ganhou, eu não questionei, muito menos disse que você havia roubado. - defendeu-se ele.
- E nem deveria, pois eu joguei limpo...
- Por favor, Ísi, para quê eu roubaria?
- Pra me fazer perguntas, claro! - objetei, analisando o tabuleiro, ainda tentando entender sua jogada.
- Eu não roubei e sabe o que eu acho? Que você está fugindo do perfil do jogo.
- Como assim?
- O combinado era uma pergunta por peça. Eu ganhei uma peça, mas você não respondeu minha pergunta. - ele precisava ter a voz mais linda de se ouvir, o olhar mais penetrante de todos os olhares? Era realmente necessário que ele fosse bonito a ponto de quebrar todas minhas defesas? - E então, qual seu filme preferido?
Sem qualquer chance de provar que ele havia roubado, trapaceado ou qualquer outra coisa do tipo, fui obrigada a obedecer às regras do nosso jogo.
- O Rei Leão. - respondi contrariada, já preparando minha próxima jogada.
- O quê? O Rei Leão é o seu filme preferido? Não entendi seu tom de surpresa.
- Sim. É emocionante.
- É um desenho.
- E qual o problema?
- Sei lá, pensei que fosse dizer algo do tipo "Ghost" ou "Titanic", esses clássicos que as
mulheres adoram, sabe? Filmes que incluem uma boa dose de romance e drama. Algo bem fácil de se emocionar.
- Ah, sem chance. Esses filmes não são páreos para a emoção de O Rei Leão - contestei. - E agora acho que é minha vez de jogar, não é?
Estávamos empatados, um a um, como ele dissera, agora era pra valer. Eu não podia me desconcentrar um segundo, pois como ele também havia dito, eu poderia não ter outra chance.
Não havia mais muito espaço no tabuleiro para que pudéssemos fugir por muito mais tempo. A cada peça movimentada esperávamos um século pra colocar em prática a próxima jogada.
Então... mais um ponto para Robert, aliás dois pontos. Ele conseguira ganhar duas de minhas pedras de uma só vez.
Que droga!
- Parece que tenho direito a duas perguntas! - anunciou ele satisfeito.
- Por que duas? - indaguei, na tentativa de que ele aceitasse fazer uma pergunta apenas.
- Uma pedra, uma pergunta. Duas pedras, duas perguntas!
- Vamos ter que rever as regras deste jogo! - arfei, incapaz de protestar de outra maneira.
- Tudo bem, mas por enquanto as regras são exatamente essas, e minha primeira pergunta será bem simples. - ele me encarou por um instante e depois, como alguém que se lembra, de repente, do que ia dizer, perguntou: - Qual sua cor favorita?
- Nossa, que falta de criatividade para elaborar perguntas! - exclamei.
- Tenho muitas outras a fazer, então acho melhor deixar as mais difíceis para o final! - ele estava me provocando descaradamente, usando minhas palavras contra mim.
- Lilás. Minha cor favorita é lilás.
Ele me olhou e pareceu sorrir, acho que se lembrou das paredes de meu quarto.
- Segunda pergunta? - eu disse insegura.
- Se o gênio da lâmpada aparecesse pra você e dissesse que realizaria três das maiores loucuras que deseja cometer. Quais seriam elas? - perguntou, os olhos ainda fixos em mim.
- Pensei que o gênio da lâmpada concedesse três desejos às pessoas e não três loucuras? -
retruquei, ganhando tempo para pensar em minha resposta.
- Bom, este é um gênio meio maluco, por isso ele quer saber de suas loucuras! - nós dois rimos com a justificativa dele.
Fiquei pensativa, me esforçando para manter a mente clara. Eu não poderia ficar olhando para ele durante as suas próximas perguntas. Robert tinha o poder de me hipnotizar e fazer com que nada passasse dentro de minha cabeça enquanto me olhava.
- Hmmm! - eu hesitei, enquanto ele aguardava curioso. - Primeiro tem que prometer que não vai rir! - pedi, envergonhada.
- Prometo! - disse, o riso estampado em seus olhos.
- É meio bobo demais, então...
- Diga o que é! - sua voz era condescendente.
Tomei coragem.
- Bom, eu queria ter coragem pra fazer alguma coisa... ilegal, sabe?
Robert cerrou os olhos para mim.
__ Ilegal, tipo... vender maconha para os alunos da sétima série?
__ Claro que não, - alarmei - para os alunos da quinta série! - corrigi.
Nós dois rimos da brincadeira e isso me deixou mais a vontade para continuar.
__ Não, é sério, eu queria fazer alguma coisa que fosse contra as regras, entende? Só pra
variar um pouco.
__ Você sempre foi a garota certinha, não é? - suas palavras não eram uma represália, mas acho que também não eram nenhum elogio.
Concordei, dando de ombros.
__ É, mais ou menos. Queria poder sair dos trilhos pelo menos uma vez, ser imprudente, totalmente irresponsável, fazer qualquer coisa ao contrário do que eu mesma espero de mim...
Parei de falar esperando pela risada dele, mas ela não veio. Robert estava cumprindo sua promessa.
Fui para o segundo item.
- Seria meio maluco se... um dia eu tivesse coragem para fazer uma apresentação musical, não um show de verdade. Quero dizer: quem nunca pensou em subir num palco e berrar uma canção qualquer para algumas dúzias de pessoas, só pela sensação de estar em um palco? Sem se preocupar com afinação, letra, ou aplausos. Só pela diversão, entende? É meio idiota,
eu sei, porque na verdade eu nem sei cantar, por isso mesmo é uma de minhas loucuras. - Robert permanecia em silêncio. Senti-me uma imbecil. O que ele estaria pensando?
- Ainda falta uma loucura! - lembrou-me ele.
Eu não queria mais responder, mas seria infantilidade demais se eu fizesse um beicinho e dissesse que não estava mais a fim de jogar. Respirei fundo, engolindo o constrangimento, e prossegui.
- Pintar o cabelo de roxo! - disparei, mexendo compulsivamente nas peças sobre a mesa.
- Roxo? - indagou surpreso.
- Éh, roxo é uma cor forte, intensa - dei de ombros. - Sei lá, queria pintar meu cabelo
dessa cor um dia, só pra saber como ficaria. Não duraria nem uma semana, talvez eu tirasse no mesmo dia, mas seria interessante ter os cabelos roxos por algumas horas. - justifiquei-me.
- Viu? Eu disse que não ia rir. - mas ele estava rindo, não de minha resposta, acho, mas um sorriso mostrava todos os seus dentes brancos em contraste com os lábios aveludados. Era tentador vê-lo sorrir.
Sacudi a cabeça voltando minha atenção para o jogo.
Era minha vez de jogar e eu estava perto de fazer uma dama, não perderia essa oportunidade.
Gastei um tempo desnecessário pensando em como chegaria do outro lado do tabuleiro sem perder minha pedra, a única que eu havia conseguido levar tão longe. Robert me olhava paciente enquanto eu pensava. Ele sabia que se eu prestasse bastante atenção acabaria por encontrar uma brecha em seu jogo.
Depois de longos minutos analisando cada possibilidade, finalmente consegui, ao ganhar uma peça dele, fazer a primeira dama do jogo.
- Não devia ter me subestimado! - alertei, como um desafio pessoal.
Ele riu. Eu me derreti.
- Primavera, verão, outono ou inverno? - perguntei com falso desinteresse. Eu queria lhe fazer perguntas mais pessoais, mas tinha medo de parecer uma obcecada.
Robert encarou-me por uma fração de segundo, os olhos brilhantes.
- Prefiro a primavera. - sussurrou, com a voz rouca que sempre me abalava.
- Eu também! - murmurei automaticamente, sem perceber que havia dito em voz e me martirizei quando ele balançou a cabeça sorrindo.
O jogo seguiu e antes que eu pudesse evitar, havia perdido mais uma peça.
Droga. Como ele fazia isso?
- Já que disse que também gosta da primavera, me diga: qual sua flor preferida? - foi a pergunta dele.
Não precisei pensar para responder.
- Sem dúvida alguma margarida!
- Margarida? Pensei que as mulheres gostassem de flores mais pomposas: rosas ou lírios, talvez orquídeas.
- Você está totalmente por fora sobre o que as mulheres preferem. - zombei.
- Ou talvez você esteja totalmente na contramão do que as outras mulheres preferem. - defendeu-se com prazer. - Margaridas? - ele insistiu.
- Sim, margaridas são... simples e lindas. Adoro as pétalas brancas em contraste com o amarelo do miolo, acho magnífico. Minha mãe tem algumas margaridas nos fundos de casa e cuida de suas flores com muito... empenho e dedicação. São as únicas flores que ela consegue cuidar sem que morram em uma semana. Talvez por esse motivo eu goste tanto delas, são resistentes. - justifiquei-me.
A lembrança de minha mãe ajoelhada sobre seu canteiro de flores, com as mãos sujas de terra e o rosto coberto de satisfação preencheu minha mente.
- Ou talvez goste porque se identifica com elas. - ele disse em voz baixa. esperei até que ele começasse a explicar. Robert ficou quieto por um instante, os olhos vagando pelo tabuleiro. Depois me encarou, e quando falou sua voz era séria - Simples, resistente e linda! - suas palavras me desconcertaram por completo.
Eu estava fracassando vergonhosamente, não conseguia me concentrar no jogo, minha cabeça ficava remoendo cada olhar que trocávamos, tentando encontrar um motivo para cada um deles.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now