39. Sacrifício

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"Cavalos selvagens devem correr livres, ou seus espíritos morrem. Você me deu a coragem para ser tudo o que eu queria ser."
Mariah Carey (Butterfly)

- Não, não aconteceu nada com papai. Ele está bem! - revelou Lena, afastando o rosto e me olhando direto nos olhos.
Se não havia acontecido nada com nosso pai, então...
Eu nem consegui respirar direito, quando percebi que a tristeza de Lena era pelo fato de saber o quanto eu ficaria triste ao saber que...
- Não, não... - minha conclusão agora era cheia de certeza e dor.
- Eu sinto muito! - Lena voltou a me abraçar, na verdade acho que ela estava mesmo era me segurando para que eu não encontrasse o chão.
- O que houve? Como ela está...?
- Você precisa se acalmar...
- Ela está bem? Ela vai ficar bem?
- Acalme-se...
- Por que não responde minhas perguntas? Será que pode, por favor, me dizer como
Sara está? - gritei histérica.
- Eu sinto muito! - era só o que Lena sabia dizer.
- Sente muito por quê? Ela vai ficar bem, não vai? Me diz o que houve, pelo amor de Deus, Lena. Ela está doente? O que é? É isso? Sara está doente?
Lena balançava a cabeça para cada uma de minhas perguntas, a dor em seus olhos estava me enlouquecendo.
- Não! Sara não está doente, Ísi. Ela... sofreu um acidente.
- Um acidente? - gritei, sem entender - Que tipo de acidente?
- Ísi...
- Que tipo de acidente, Lena? Fala logo, por favor! - rosnei, impaciente.
- Bom, parece que Sara saiu para cavalgar a noite passada, e...
- E? - por que Lena estava fazendo tanto suspense, isso era maldade.
- Ela não estava com a égua dela, estava com seu cavalo...
- Sara montou em Sol? - quase sorri com a idéia. Raramente Sara aceitava montar meu
cavalo, dizia que ele era "mimado demais" para as rédeas. "Sol o é mimado, é selvagem" era o que eu respondia, orgulhosa por quase sempre deixá-lo livre para escolher o destino de nossas aventuras.
- Ísi?
Lena me chamou, fazendo-me voltar para a noticia inacabada. Encarei seu rosto por um
instante.
- O que houve? - minha voz tinha um vestígio amargo do que estaria por vir.
- Parece que ela acabou sofrendo uma queda...
- Mas não foi nada sério, não é? Nada grave?
Os olhos de minha irmã contrariavam minhas palavras.
Tentei continuar respirando.
- Infelizmente só a encontraram hoje pela manhã, perto do rio.
- Ela passou a noite toda fora? A mãe dela deve ter pirado! - não consegui evitar um sorriso ao pensar no quanto Sara havia sido corajosa e imprudente, talvez, na verdade eu estivesse sorrindo mais por nervosismo do que por qualquer outra coisa - E como ela está? Aposto que está se gabando de sua aventura inconsequente!
Lena tocou meu rosto suavemente e seu toque revelava a realidade que eu não desejava.
- Ísi, ela está... Sara está morta.

Apaguei nos braços de Lena.

Não sei dizer por quanto tempo fiquei inconsciente. Quando acordei, estava deitada em minha. Minha irmã estava ao meu lado, alisando meu cabelo com as pontas dos dedos.
Havia um vazio em meu peito, um buraco negro devastador. Agora fazia sentido. Era a mesma estranha sensação que havia me dominado no camimho de volta pra casa, no carro de Robert...
Robert, eu só queria que ele estivesse aqui, agora...
Lena beijou minha testa com carinho, e senti uma vontade tortutrante de vomitar... aquela dor era grande demais pra continuar dentro de mim.
Uma batida na porta da frente me assustou um pouquinho ao quebrar o silencio dentro do apartamento. Quando Lena saiu para atender, rolei de lado e me agarrei ao meu travesseiro, fechei os olhos e tentei não pensar em nada.
- Vieram te ver! - disse Lena, reaparecendo na porta do meu quarto, minutos depois. Olhei em sua direção e, junto dela, Robert e Sofia me encaravam.
Não sei como, mas acho que consegui sorrir, era sempre preciso sorrir quando ele surgia na minha frente.
- Eu... liguei pra ele, do seu celular. - explicou Lena, dando de ombros - Achei que, sei lá, ele é seu namorado, então... - ela deu de ombros mais uma vez. Era nítido o quanto minha irmã estava apavorada com aquela situação. Ela não fazia ideia do quão transtornada e abalada eu poderia acordar do desmaio, e ligar para Robert, mostrava o quanto ela temia lidar com tudo aquilo sozinha.
Fiquei olhando para aqueles três pares de olhos, que me encaravam da porta, como se eu fosse uma moribumda em seus ultimos instantes de vida.
- Hã... Ísi, vou até o apartamento da Suz... - disse Lena, olhando para Robert por um momento. - Fiquem à vontade! - disse, fugindo do quarto.
Um minuto depois, ouvimos o barulho da porta de entrada sendo fechada.
- Ela pediu para que eu viesse te ver! - explicou Robert, com um meio sorriso triste e lindo. - Como você está? - ele quis saber, entrando no quarto e arrastando um anjinho pela mão.
- Você já sabia, não é? - eu disse, encarando-o. - Por isso, no carro, me disse para ser forte!
Robert sustentou meu olhar com um quintilhão de desculpas silenciosas.
- Eu sinto muito, Ísi! - murmurou a vozinha melódica de Sofia. Ela sentou-se no chão, com seu rostinho redondo, debruçado sobre a cama. Eu não era forte o bastante para sorrir duas vezes seguidas, por isso apenas abanei a cabeça, indicando que estava tudo bem.
De repente, a face inocente de Sofia transfigurou-se no mesmo rosto que eu vira no quarto dela, há sei lá quanto tempo, quando me propôs que me separasse de Robert. Era um rosto infantil ainda, mas havia alguma coisa ali que não estava no lugar.
Então ela começou a falar...
- Deve ser difícil pra você! Saber que sua melhor amiga sacrificou-se para te manter viva...
- Sofia, o que está dizendo! - a voz de Robert me fez estremecer, um rugido irritado e... indignado. Eu nunca o havia visto exaltado desta maneira, fiquei assustada, mas Sofia nem pareceu se importar, continuou com o rostinho mascarado debruçado na cama, me fitando.
Por mais que a reação de Robert tenha sido uma surpresa para mim, não superou a surpresa que foi a revelação que Sofia acabara de fazer.
O que ela queria dizer com...
Robert segurou a irmã pelo braço, arrastando-a para perto do guarda roupas. Não havia brutalidade em seu gesto, mas havia raiva em seu rosto lindo.
- Foi para isso que quis vir? Para perturbá-la ainda mais? - grunhiu ele, para a garotinha que o encarava com olhos adultos e hostis. Foi a primeira vez que senti medo dela.
- Achei que você mesmo contaria toda a verdade a ela, mas vejo que eu estava enganada, não é? - não parecia mais a mesma Sofia que tinha brincado de casinha comigo um dia.
- Do que ela está falando, Robert, que verdade? - murmurei, levantando da cama.
- Não é nada - ele não iria me contar.
- Que verdade, Sofia? - perguntei, sabendo que dela eu obteria uma resposta.
- Você não vai dizer nada, não é necessário! - bradou Robert e pude ver quando colocou mais pressão no bracinho frágil dela.
- Solte-a! - ordenei. Minha voz saiu exatamente como eu havia planejado, autoritária e suplicante. - Eu quero saber o que é! - ele encarou-me incrédulo, os olhos mais tristes que nunca.
Lentamente, enquanto eu sustentava seu olhar, seus dedos foram se afrouxando e libertando o braço de Sofia. Ela me tomou pela mão e me levou de volta a cama. Robert foi encostar-se no batente da porta, os braços cruzados no peito e o rosto retorcido de contrariedade.
Sofia começou a falar, fazendo com que meus olhos saíssem da imagem do meu anjo sofredor e fossem para os olhos dela.
- Sara era sua alma irmã. - ela se interrompeu por um segundo. Parecia que estava lembrando alguma coisa particular e depois recomeçou. - Todo ser humano tem uma alma irmã. Muitos pensam que alma irmã é o mesmo que alma gêmea, mas não, não é. Há uma ligação profundamente poderosa entre almas irmãs, por isso geralmente elas tornam-se melhores amigas, são inseparáveis. Como você e Sara.
Isso não me era nenhuma surpresa, sempre soube que no fundo, em algum lugar, existiria uma explicação para o amor e para ligação existente entre Sara e eu.
- E sobre a parte que você disse que ela... - não consegui terminar a frase. Sofia sondou
Robert rapidamente, depois voltou a me olhar.
- Que ela sacrificou-se para te salvar? - completou com as palavras que não saiam pela minha boca. Concordei com a cabeça e um novo sentimento nascia em meu coração. - Assim como com os anjos da guarda, as almas irmãs vivem como protetora e protegida, quando a protegida está em dificuldades a protetora estará lá pra lhe estender a mão...
- Ela era a... protetora! - objetei, num sussurro.
- E você a protegida! - ela soltava as palavras como numa historinha para criança dormir.
- Por que ela era a protetora? - indaguei, sem saber se isso era mesmo uma pergunta.
- Simplesmente porque alguém precisa ser o cordeiro do sacrifício! É uma escolha consciente que cada alma irmã faz, no momento em que decidem habitar um corpo. A alma de Sara escolheu ser a protetora, sua alma aceitou tal decisão. Por isso ontem ela sacrificou-se por você...
- Como? Por quê? - minhas perguntas saiam engasgadas.
- Já ouviu aquela expressão "Era pra eu estar no lugar dele ou dela"? Então, as almas irmãs protetoras geralmente fazem isso, geralmente evitam que sua protegida parta deste mundo, é como se elas fizessem uma troca, dessem uma segunda chance à sua protegidas!
- Foi isso que Sara fez?
- Sim, digamos que ela pressentiu o que estava pra te acontecer, ontem na festa, e resolveu... partir em seu lugar! - Sofia me sondou por um instante - Então o único motivo para você ainda estar aqui é que Sara deu a vida por você. - as palavras de Sofia eram quase uma acusação.
- Mas não deve achar que a morte dela é culpa sua, Ísi! - conjeturou Robert, vindo ajoelhar-se aos meus pés, perto da cama.
Ruminei por um instante tudo o que acabara de ouvir e, por mais estranho que me pareceu, não consegui me sentir realmente culpada por Sara ter morrido em meu lugar. Em meu coração a culpa era exclusivamente de outra pessoa.
- Não acho que sou culpada! - murmurei para tranquilizá-lo.
- Não? - a pergunta saiu em uníssono das bocas de Robert e Sofia, o "não" dele foi de alívio, o dela de surpresa.
- Não. - repeti. - Eu faria o mesmo por ela, se fosse possível!
- Não pode estar falando sério. - resmungou Sofia. - precisa entender que isso só aconteceu porque você e Robert...
- Chega Sofia, já disse tudo o que podia para apavorá-la, para fazê-la desistir de mim...
- Desistir de você? - indaguei confusa.
- Minha irmãzinha aqui achou que te contando o porquê da morte de Sara, você se afastaria de mim, por medo do... risco que isso poderia significar para as outras pessoas que ama.
Sofia deu de ombros.
- Eu precisava tentar! - justificou-se. - Não sou contra o... amor de vocês, mas acho que
isso pode ser mais perigoso do que imaginam, só estava tentando evitar uma tragédia.
Senti um arrepio frio percorrer minha espinha com aquelas palavras. Com aquela palavra na verdada, tragédia.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, mesmo sem ter qualquer coisa para dizer, a porta da frente se abriu, Lena estava de volta. Robert levantou-se rapidamente retomando a compostura, eu voltei a deitar na cama e Sofia nem ao menos se mexeu.
- Não quero ser rude, mas acho que Ísi precisa descansar um pouco! - disse Helena, a irmã mais velha e protetora, surgindo na porta do quarto. Sua voz era meio ríspida. Fiquei pensando como estaria seu tom se ela pretendesse ser rude. - Eu os acompanho até a porta.
Sofia deu-me um beijo no alto da testa, e Robert limitou-se a sorrir para mim - o que minha irmã devia pensar de nosso namoro? Nunca nos tocávamos na presença dela, nem mesmo nas despedidas. Sem dúvida ela devia achar isso um pouco estranho.
Assim que os dois se foram uma noite escura fechou-se sobre mim, pesando em minhas
pálpebras, em meu corpo, pesando em meu coração.
Saber que Sara havia se sacrificado por mim, só fez com que eu a amasse ainda mais, e a dor em meu coração parecia muito mais justificável também.
Naquela noite dormi mais profundamente do que em qualquer outra noite da minha vida. Lena havia me dado dois comprimidos para dor de cabeça, e isso fez com que dez minutos depois de fechar os olhos eu estivesse completamente inconsciente - acho que os carinhos de Lena em meu cabelo também cooperaram para o nocaute.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now