3. Perdida e Salva (I parte)

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"De quantas graças tinha, a Natureza fez um belo e riquíssimo tesouro. E com rubis e rosas, neve e ouro, formou sublime e angélica beleza." - Camões

Segunda-feira, primeiro dia de aula em meu novo colégio. O desespero me tirou da cama num salto. Lena não estava mais ao meu lado.
Corri até a cozinha e encontrei, pregado na porta da geladeira, com um imã de coração, um bilhete escrito às pressas.
"Boa sorte no primeiro dia de aula, bjs, Lena!"
Respirei fundo.
O colégio não ficava tão longe, uns cinco ou seis quilômetros, e o acesso era bem fácil, então eu nao me perderia no caminho.
Tomei um banho rápido e me troquei. Vesti minha saia creme preferida, uma blusa azul-marinho de mangas curtas e calcei os tênis. Olhei no espelho e odiei o reflexo que vi alí. Meu rosto parecia cansado demais, devia ser pelo ar tão abafado logo cedo. Pensei em prender o cabelo num rabo de cavalo, para minimizar o calor, mas acabei deixando-o solto, porque nao encontrei nenhum elástico.
Considerei a ideia de visitar um cabeleireiro no fim do dia e pedir para que fizesse um corte como o da minha irmã, rente a nuca. Mas abandonei a possibilidade, afinal meu cabelo não havia crescido, até a cintura, da noite para o dia. Eu me arrependeria amargamente.
Verifiquei mais uma vez minha mochila: cadernos, livros, canetas, bloco de anotações... Minha irmã havia comprado tudo o que eu iria precisar.
Quando olhei as horas no relógio do microondas quase tive um ataque.
- Droga! - eu estava atrasada.
Desci, pelas escadas, carregando minha bicicleta cintilante como uma maçã do amor, e já ia saindo do prédio quando ouvi alguém me chamar.
- Quer companhia? - perguntou Marcos, quando me virei. Ele descia o ultimo lance de escadas, com uma mochila atirada sobre os ombros.
Ele sorriu ao olhar minha bicicleta quando se aproximou.
- Bela bike!
- Valeu! - agradeci, apesar de achar aquela cor meio extravagante demais. - Também estuda no Princesa Isabel? - perguntei.
O garoto deu de ombros, como se não gostasse muito dessa ideia.
- Fazer o quê? É um dos melhores colégios do Rio de Janeiro, apesar de ser público.
Lembrei-me que foi exatamente o que meus pais me disseram, para tentar amenizar o choque da mudança de escola. Claro que não funcionou.
- Então eu deveria me sentir privilegiada? - zombei. Foi também o que eu disse aos meus pais na ocasião.
Marcos riu de meu desdém forçado.
- Tem um monte de platboyzinhos, e filhinhos de papai que estudam lá, sabia?
- Caramba, que horror! - fingi uma careta - Acho que esse colégio não deve ser tão bom assim!
Nós dois rimos.
- Se quiser, pode colar na minha, e... Seja bem vinda a ralé!
- Obrigada! - agradeci, fingindo alívio - Agora é melhor nos apressarmos! - eu já podia sentir meu estômago preparando uma tentativa de fuga. Mas eu nao deixaria que ele fugisse de mim, não desta vez.
Esperei, enquanto Marcos destrancava sua bicicleta, que ficava num espaço apertado embaixo das escadas, reservado para as bicicletas dos condôminos.
Não sei se era proposital, mas ele estava fazendo tudo com uma lentidão angustiante.
- Pronto? - tentei apressá-lo, mas não funcionou. Marcos continuou tranquilo, enquanto guardava a chave da tranca na mochila.
- Por que está tão ansiosa? Já perdemos a hora de qualquer forma mesmo.
- Não, se nos apressarmos, podemos chegar antes do segundo sinal.
Tudo o que eu não queria, era chegar atrasada no primeiro dia de aula. Mas nos últimos tempos o que eu queria parecia não ter muito valor para o universo.
Então, mesmo eu insistindo em pedalar o mais rápido possível, o que, na verdade, não era tão rápido assim, Marcos e eu não conseguimos chegar a tempo de entrar na sala antes dos professores.
- Droga! - reclamei ofegante, quando chegamos ao estacionamento.
Não havia nenhum vestígio de adolescentes eufóricos com a volta às aulas. Apenas o silêncio de centenas de bicicletas, de cores e modelos variados, e alguns carros espalhados pelo pátio cimentado.
- Teremos que passar na secretaria e pegar autorização para assistirmos a primeira aula! - disse Marcos, enquanto entravamos no prédio principal.
A secretária nos lançou um olhar rigoroso pelo atraso, mas liberou as autorizações de boa vontade. Pensei que ela me barraria, que me pediaria uma dezena de documentos, ou exigiria a presença de um responsável maior de idade, afinal eu era nova alí. Mas Lena já havia cuidado de toda a parte burocrática. Era só eu chegar e me enturmar.
"Maravilha!"
Minha primeira aula era de matemática, prédio dois. Marcos não era da minha turma, mas me acompanhou até a porta da minha sala, e, apesar de estarmos terrivelmente atrasados, caminhamos lentamente pelo longo corredor de salas dos segundos anos.
- Boa sorte aí dentro! - disse ele, quando paramos em frente a uma grande porta de madeira.
- Obrigada! - sussurrei, com um sorriso tenso e quase sumido - E... boa sorte pra você também!
Ele não disse nada, apenas sorriu afetuoso, e isso me tranquilizou por uma fração de segundos.
Enquanto tomava coragem para bater na porta e interromper a aula, fiquei observando Marcos afastar-se cada vez mais.
Eu podia ouvir a voz do professor vinda de dentro da sala. Parecia uma voz severa, e isso me enfraqueceu ainda mais.
Respirei fundo, tentando espantar o fantasma da estréia. Contei até cinco, depois recomecei e fui até dez. Cerrei o punho e fui em fente... três batidinhas, quase inaudíveis, na porta.
Houve silêncio dentro da sala.
Esperei.
Segundos depois a porta se abriu e um homem de meia idade, alto e magro, me encarou severamente.
Eu lhe entreguei minha autorização, ele deu uma olhada, e sua testa se enrugou quando constatou que eu era uma aluna atrasada.
- Entre! - vociferou ele, os olhos cerrados para mim.
- Co... Com licença! - gaguejei. Minha voz era um cicio constrangido.
Arrastei-me vergonhosamente para dentro da sala, desejando ter o super poder de ficar invisível.
Dezenas de pares de olhos viraram-se na minha direção.
Comecei a tremer como uma idiota na frente de toda a classe. O professor caminhou até mim, e parou ao meu lado, em frente ao quadro negro.
- Bom, turma, esta é... - ele sondou meu nome na autorização - Heloísi Silva, ela acabou de ser transferida do interior de São Paulo, e vai estudar aqui conosco.
Houve um burburinho pela sala, enquanto o professor continuava.
- Espero que possam mostrar à ela toda nossa hospitalidade, tudo bem? - ele encarou a classe como se aquilo fosse algum tipo de aviso, e não uma simples recomendação. Depois me fez gaguejar uma apresentação lamentavelmente incoerente. Tenho certeza de que foi apenas para me punir pelo atraso. Eu teria escolhido a cadeira elétrica, se ele me desse essa opção.
O professor retomou a aula assim que me sentei, em uma carteira vaga bem na frente, e mesmo com a voz alta e meio anasalada dele, eu podia ouvir os sussuros e risadinhas às minhas costas.
Não seria fácil, eu já sabia disso.
Fiz algumas anotações sobre a aula, o que, para mim, era um esforço extra-humano. Eu detesto matemática. Não apenas pelo motivo óbvio - matemática é um saco - mas também porque nunca consegui entender o motivo de alguém inventar formas tão complexas para se calcular algumas coisas. Eu tinha calafrios só de pensar em nomes como Ptolomeu, Laplace, Pitágoras... e tantos outros que cooperaram para a matemática ser o monstro de sete cabeças que é hoje. Por que eles não podiam se contentar com o ábaco? Para mim, as quatro operações básicas já seriam mais do que suficiente. Pois é, tente dizer isso para um professor de exatas.
Durante a aula, ninguém se deu ao trabalho de tentar falar comigo. O sinal tocou, como um grito histérico e, graças aos céus, meu martírio teve fim.
Minha próxima aula era de história, corredor seis, sala oito. Segui para lá, sozinha, e parecia que todo mundo estava olhando para mim. Me senti como um bichinho em exposição num zoológico. Mas eu não era o filhote fofinho de uro que todo mundo quer ver, ou qualquer outro animal extraordinário que valesse as entradas. Não, eu estava mais para um animal não identificado, que chamava a atenção justamente por ser diferente.
Alguns alunos murmuravam coisas e riam quando eu passava por eles, outros se desviavam providencialmente do meu caminho, talvez temendo que eu pudesse lhes transmitir algum tipo de doença rara trazida do "meio do mato". Eu estava começando a me sentir uma aberração, ou quase isso.
Por fim encontrei minha sala, e dessa vez escolhi uma carteira bem no fundo.
O Sr. Veríssimo - nem acreditei que este era mesmo o nome dele - era um homem de pouco mais de cinquenta anos de idade, cabelos ralos e ensebados. Olhos negros e expressivos. Vestia camisa branca, calça de alfaiataria e sapatos lustrosos. Entrou na sala e imediatamente o silêncio se formou.
- Bom dia a todos, sou o professor de história, a maioria de vocês já me conhece, mas vejo que este ano temos alguns rostos novos na turma. - o olhar dele disparou para mim. Baixei a cabeça instintivamente, rezando para que ele também não me fizesse gaguejar uma apresentação. Seria o fim do mundo.
O professor continuou.
- Seguiremos juntos por todo o ano letivo, e vocês terão que me aguentar, assim como terei que aguentar vocês. Por isso quero estabelecer um acordo de paz desde o início: não me aborreçam, e não aborrecerei vocês; não me subestimem, e não subestimarei vocês.
Ele desfiou um rosário soporifico de pequenas exigências. Aquela foi a aula mais demorada do dia, e quando o sinal tocou, para o horário do almoço, os alunos sairam aliviados da sala de aula, e Marcos estava ali, encostado no batente da porta, já esperando por mim. Sorri aliviada, invadida por uma sensação de não estar mais sozinha - ninguém ainda havia me cumprimentado.
Peguei minha mochila e caminhei direto para ele.
- Oi! - ele disse sorrindo, quando me aproximei - E aí, como está sendo o primeiro dia de aula? Sobrevivível?
- É, acho que... sobrevivível! - concordei - E você, como está se saindo?
- Acho que sou um sobrevivente! - ele piscou para mim, o sorriso agora mais aberto no rosto.
Seguimos pelo corredor até o refeitório. Estar com Marcos era, de repente, como estar em um lugar conhecido. Sentia-me segura ao lado dele, era como ter um irmão mais velho - tá, nem tão mais velho assim.
Entramos na fila da cantina, depois seguimos para uma das muitas mesas espalhadas pelo grande refeitório.
Os horários daqui eram bem diferentes da minha antiga escola. Se lá os alunos reclamavam por estudarem meio turno, aqui eles ateariam fogo ao próprio corpo por terem que ficar na escola das sete e meia da manhã até as três da tarde. Um verdadeiro suplício para qualquer pessoa com um pouquinho de amor próprio.
Aqui o período da manhã era reservado para as matérias básicas do ensino médio. Depois do almoço eram as atividades extra curriculares obrigatórias: Esportes, Artes, Educação Ambiental, Educação Financeira Básica, Literatura Universal... Cada aluno tinha que escolher duas atividades extras , no mínimo.
Não optei por Artes, porque não suporto a ideia de expor minhas criações. Fiquei com esportes e Literatura Universal.
Enquanto Marcos e eu comíamos, fiquei observando a diversidade de estilos desfilando pelo refeitório. E o que mais chamou minha atenção foi um grupo de quatro meninas. Elas eram altas, magras, bronzeadas e absurdamente loiras. Primas autênticas da Gisele Bündchen. Não tinha quem não se virasse para olhá-las, pareciam modelos desfilando a última coleção da Victória's Secret. As quatro se vestiam injustamente bem, com roupas que a maioria das garotas trocaria pela própria mãe.
- Nossa, como elas conseguem ser tão bonitas? - comentei, quando o grupinho das quase Barbies, passou por nós, como atrizes num filme adolescente.
Marcos as observou por um instante, depois deu um longo gole em seu refrigerante e virando-se pata mim, disparou.
- É, elas são bonitas, mas não é o tipo de beleza que me atrai.
- O que? Por favor, que piada! - contestei, rindo alto da afirmação dele, afinal elas eram lindas, impossível algum cara não se sentir atraído.
- É sério! - garantiu ele - Elas são realmente bonitas, isso é inegável, no entanto eu não me sinto atraído por nenhuma delas. Talvez seja a superficialidade, o excesso de maquiagem ou a falta de naturalidade, sei lá! - ele deu de ombros.
- Quer dizer que você nunca sairia com uma delas? - questionei.
- Não distorça minhas palavras. Eu disse que não me sinto atraído pelo biotipo delas, não que eu não tentaria algum lance com uma delas.
Eu ri.
- Já entendi! - afirmei.
- O que você já entendeu?
- Simples, você diz para si mesmo que não se sente atraído por nenhuma delas, assim evita ficar sonhando com qualquer possibilidade de um envolvimento entre vocês. É como se você as rejeitasse, antes delas terem a chance de te rejeitar. - concluí.
Marcos me olhava atônito.
- Sabe o que eu acho? - cochichou, se inclinando na mesa, ficando mais perto de mim.
- O que? - cochichei de volta, também me inclinando para ele.
- Acho que essa sua teoria é uma furada! - disse, encostando na cadeira, e dando uma mordida em seu sanduiche de queijo.
Depois, com um brilho indagador nos olhos, me perguntou.
- Mas... e você?
- O que tem eu?
- Que tipo de garoto te atrai?
Fiquei um pouco desconsertada com a pergunta.
Dei um dentada na pêra, que aguardava intacta em minha bandeja. Mastiguei lentamente, prendendo-me ao sabor, apenas para ganhar tempo. Era difícil responder àquela pergunta.
Eu nunca havia parado pra pensar qual tipo de garoto exatamente me atraia. Eu nunca havia me interessado por ninguém. Como saber qual meu perfil ideal?
Olhei em volta, buscando por alguém que supostamente pudesse se encaixar em um padrão de escolha universal.
- Que tal aquele alí? - Marcos indicou com a cabeça um garoto que passara por nós. - Ele tem cara de que faz o seu tipo! - concluiu sorrindo.
O garoto apontado era uma mistura desastrosa de nerd com cantor de rock dos anos noventa. Usava uns óculos enormes, sem lentes, e correntes penduradas na calça jeans.
- Você só pode estar brincando! - protestei, pasma.
Marcos deu de ombros.
- Aquele alí então... O de blusa amarela! - sugeriu.
- Não, nem pensar... - quase gritei. O garoto era o tipo perfeito de rato de academia. Sua blusa, com certeza, não ficaria tão apertada se ele comprasse o número certo, e não o tamanho menor, apenas para parecer mais forte.
Marcos riu.
- Você é exigente! - zombou - Tá legal, pode confessar, eu sou o tipo de cara que te atrai, não sou? - debochou presunçoso.
Fingi não notar a pontinha de seriedade naquelas palavras.
- Ah, claro, você sem dúvidas é o tipo de cara que me atrai. - concordei - Que me atrai má sorte, não é? Primeiro me faz ficar plantada na rodoviária, depois me faz chegar atrasada no primeiro dia de aula. O que vem depois? Qual será a próxima atração?
Ele cerrou os olhos para mim.
- Você já estava atrasada, sabe disso. E eu já me desculpei pelo lance da rodoviária. Portanto, vou ignorar sua colocação. - ele estava se esforçando para parecer sério. - Que tal aquele alí, sentado atrás de você? - sugeriu, voltando às buscas pelo meu tipo ideal.
Disfarçadamente, me virei para observar o garoto da vez.
- Ah, já chega, você só pode estar de brincadeira! - reclamei, tentando não rir.
Marcos olhou-me espantado.
- Tá falando sério? Porque ele é um dos caras mais disputados da escola, sabia? - informou com ênfase.
- Sério? Que bom... pra ele! Mas, aquele "Ken", combina com uma das suas Barbies rejeitadas, não comigo. Olhe só para ele, com certeza não faz o meu tipo.
O cara era um dos playboyzinhos de que Marcos me falara mais cedo. Aliás, era bem fácil reconhecer os filhinhos de papai dessa escola. Eles andavam em grupinhos barulhentos com seus aparelhos tecnológicos de última geração à mostra.
Marcos recostou-se na cadeira e cruzou os braços, enquanto me encarava.
- Já entendi! - ele disse, com ar de mistério.
- O que você já entendeu?
- Você diz que o cara não faz seu tipo, apenas para não se frustrar, caso nunca tenha uma chance com ele, não é? Você o está rejeitando, antes mesmo que ele possa te rejeitar. - concluiu, sorrindo satisfeito por usar minhas palavras contra mim.
- Ah... isso é... ridículo! - grunhi, sem conseguir deixar de rir com ele.
Levantamos, pegamos nossas coisas e começamos a caminhar pelo refeitório apinhado de alunos.
- Preciso ir até a secretaria, preencher os horários das minhas aulas extras! - disse Marcos, quando passamos pelas pesadas portas de saída do refeitório, e demos em um extenso gramado coberto de sol, onde um número, impressionantemente, alto de alunos refestelava-se em grupos diversos, conversando, rindo e aproveitando o horário do almoço.
Era tão diferente do meu antigo colégio.
- Você vem comigo? - perguntou Marcos. Mas fui incapaz de responder, porque, de todas as pessoas naquele gramado, um garoto conseguiu prender meu olhar e toda minha atenção, como se fosse impossível não vê-lo, impossível não enxergá-lo, mesmo que estivéssemos em uma multidão formada por todas as pessoas do mundo inteiro. Eu o enxegaria ainda que fosse cega...

IntrínsecoWhere stories live. Discover now