28. Momentos

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Robert me deixou em casa aquela tarde, depois da aula, e se recusou a subir comigo para o apartamento de Lena. Pensei que fosse de novo por causa daquela história de querer ser um namorado decente, coisa e tal, mas ele me garantiu que esse não era o motivo. Não consegui evitar uma cara emburrada, enquanto me despedia dele através da janela do jipe.
Quando entrei em casa, irritada e sozinha, descobri a razão por ele recusar tão deliberadamente meu convite.
- O que está fazendo aqui? - perguntei surpresa. Lena estava sentada no sofá da sala vendo TV. - Não devia estar no hospital?
- Troquei meu turno com uma amiga, vou trabalhar à noite hoje! - explicou, se espreguiçando entre as almofadas.
Coloquei minha mochila no chão e me sentei junto dela. Seria bom ficar um pouco com minha irmã, eu já nem sabia mais há quanto tempo não passávamos uma tarde juntas.
- Como está indo o colégio? - ela quis saber, quando acomodei a cabeça em seu colo.
- Bem, de um modo geral, acho que sou boa aluna! - eu ri de minha falta de modéstia, depois me lembrei que eu não era tão boa aluna assim. - A não ser em cálculo. - confessei. - Não fui muito bem no último teste, mas não se preocupe, já estou correndo atrás do prejuízo! - assegurei, antes que ela viesse com um sermão sem fim.
Lena respirou fundo.
- Sabe... eu temia que você quisesse voltar pra Campos depois do primeiro mês!
- Eu quis voltar depois do primeiro mês. - retorqui. - Mas aí... as coisas começaram a
melhorar - e muito, pensei. - então resolvi dar tempo ao tempo.
Ela riu, enquanto passava os dedos pelo cabelo, desfazendo alguns cachos.
- E hoje você adora viver no Rio de Janeiro! - objetou, sugestivamente.
- É, até que é bem legal viver aqui! - desdenhei descaradamente.
Ficamos em silêncio, prestando atenção na TV, então um pensamento começou a se formar em minha cabeça.
- A que horas vai sair pra trabalhar? - perguntei indiferente.
- Às seis e meia. - respondeu Lena, toda distraída, com os olhos fixos na televisão.
Levantei do sofá, me espreguiçando e disfarçando minhas reais intenções. Peguei minha mochila e caminhei para o quarto, depois peguei meu celular e busquei o número dele e apertei ligar.
Esperei ansiosa, enquanto chamava. Uma voz rouca atendeu ao terceiro toque.
- Alô!
- Robert...
- Ísi! - eu simplesmente adorava quando ele dizia meu nome, algo dentro de mim se contorcia de alegria.
- Tenho uma proposta para lhe fazer! - anunciei.
Ele continuou em silêncio esperando que eu continuasse.
- Humm... Lena vai trabalhar no turno da noite hoje, então... eu pensei... que talvez
você pudesse passar por aqui... mais tarde. - eu estava sussurrando ao telefone, com medo de que minha irmã me ouvisse.
- Não sei se é uma boa ideia... - a voz de Robert parecia resignada demais para meu gosto.
- É uma ótima ideia e você sabe disso! - conjeturei asperamente.
Ele riu.
- O que sua irmã disse a respeito?
- Bom, talvez eu deva dizer a ela que pretendo fazer a lição e ir pra cama cedo! - sugeri.
- Não. Não quero que minta... ainda mais por minha causa. Peça permissão a ela.
- O quê?
- Ísi, imagine o que ela irá pensar se descobrir!
- Ela não vai descobrir! - afirmei.
- Não tenha tanta certeza, irmãs mais velhas têm um faro bem apurado para mentiras, sabia?
__ Isso é só lenda pra amedrontar irmãs mais novas, isso sim! - ele riu do outro lado da linha.
__ Bom, de qualquer forma, não acho que devia trair a confiança que Lena tem em você. Pedir permissão mostra o quanto é madura.
- Mas... e se ela não concordar?
- Pelo menos teremos tentado, e da maneira correta.
- Robert...
- Eu só vou com o consentimento de sua irmã. Preciso ganhar alguns pontos com ela. - tenho certeza de que ele estava rindo de novo.
- Não sei por que você insiste nisso, não faremos nada que ela desaprovaria.
- Tente convencê-la disto! - zombou ele.
- Te ligo de volta em cinco minutos. - garanti.
- Estarei aguardando!
Desliguei o celular. Respirei fundo para tomar coragem e caminhei de volta para a sala. Sentei no sofá ao lado de Lena, e ela manteve os olhos fixos na televisão. Esperei um instante, precisava pensar numa abordagem eficaz.
- O que você quer? - perguntou ela de repente, ainda olhando para a TV.
- N-nada, - gaguejei. - Não quero nada. Por que está me perguntando isso?
- Você sentou aí e faz um minuto que está me encarando compulsivamente, alguma coisa você deve estar querendo. - concluiu, dessa vez me olhando presunçosamente nos olhos.
- Tudo bem - me entreguei. - Hã... eu estava pensando em... convidar...
- Não. - disse ela, voltando os olhos para a tela a nossa frente.
- Você nem sabe o que eu ia dizer... - reclamei.
Ela me encarou novamente e percebi que ela sabia sim, exatamente, o que eu iria dizer.
- Você estava pensando em convidar aquele seu... - ela se conteve. - em convidar Robert
pra vir até aqui enquanto eu estiver fora, não é isso? - ela não era normal.
- É, mas...
- Já sabe minha resposta! - disse ela secamente, indo para a cozinha.
Eu a segui.
- Lena, qual o seu problema com ele?
- Problema nenhum. Só não quero você sozinha neste apartamento com... o seu... namorado. - ela não gostava muito daquela palavra.
- E eu não quero ficar sozinha neste apartamento a noite toda. Você não estará aqui, não gosto da ideia de ficar sozinha numa casa vazia a noite - resmunguei.
- Faça sua lição de casa e vá pra cama bem cedo, garanto que estarei de volta antes que você possa perceber que está sozinha. - sugeriu, abrindo a geladeira e procurando qualquer coisa lá dentro apenas para se manter distraída. "Eu devia ter dito isso desde o início", pensei.
- Lena...
- Tudo bem. - ela se virou para me encarar. - Se não quer ficar sozinha, por que não chama o Marcos pra te fazer companhia? - O quê? - eu quase gritei de surpresa. - Não acredito que estou ouvindo isso!
- Qual o problema? - ela parecia despreocupada, como se tivesse me dado a solução perfeita.
- Qual o problema? - repeti exaltada sabendo que minha irritação não ajudaria em nada. - O problema é que Marcos não é meu... namorado. O que você acha que Robert iria pensar se eu
chamasse o vizinho pra me fazer companhia?
- Humm, então quer dizer que você tem um namoradinho ciumento? - ironizou ela.
- Não. Robert não é ciumento, mas você tem que concordar que seria bem estranho se...
- Não tenho que concordar com nada. - interrompeu-me ela. - Nem sei por que estou discutindo isso com você, já te dei minha resposta.
Bufei.
- Isso é o que se ganha por dizer a verdade. Eu poderia ter mentido pra você. - argumentei.
- Você é uma boa garota, Ísi, sempre diz a verdade. - elogiou, pegando a caixa de suco e virando o líquido dentro de um copo, depois guardando a caixa novamente na geladeira.
- Isso não é verdade, eu realmente ia mentir pra você. - confessei. Ela me fuzilou com os olhos. - Mas Robert não permitiu que eu fizesse isso. Ele me convenceu a pedir sua permissão, disse que não era certo eu trair sua confiança.
Ela bebeu um gole do suco.
- É, pelo menos ele é um... garoto sensato.
- Lena, não faremos nada que você desaprovaria, prometo! - supliquei.
- Eu sei que não. - garantiu, e parecia ter mesmo certeza disso.
- Então por que ele não pode vir aqui?
Lena respirou, reunindo todo seu estoque de paciência.
- Ísi, você é muito nova para namorar, e ainda é nova por aqui. Acho que devia fazer mais amigos, conhecer outras pessoas. Como pode saber se esse garoto é a pessoa certa pra você se só conheceu meia dúzia de pessoas até agora? - ela nunca entenderia.
- Mesmo que um dia eu conheça todas as pessoas do mundo, ainda assim, Robert continuará sendo a única pessoa certa para mim, espero que você possa entender isso. Eu o amo! - garanti com rispidez.
Não gostava quando ela começava com essa conversa de que ele poderia não ser a pessoa certa pra mim. Quem poderia ser a pessoa mais certa pra se passar o resto da
vida do que seu próprio anjo da guarda?
- Você é apenas uma criança, não sabe o que é amor? - disse ela, cheia de carinho e ternura.
- Por que fica dizendo estas coisas? Não sou criança.
Ela não respondeu, pegou seu copo de suco e começou a voltar para a sala.
- Por favor! - pedi uma última vez, com a voz embargada pela súplica de lágrimas que eu forçava em manter longe dos olhos.
Lena parou no caminho, respirou fundo antes de se virar para mim com olhos contrariados.
- Tem certeza de que podem se comportar? - perguntou com um tom de consentimento.
- Muito mais do que imagina! - prometi entusiasmada, beijando-lhe o rosto.
Ela sentou-se no sofá da sala sem dizer mais nada.
Então aquilo era um sim?
Acho que era.
Corri para o quarto para ligar e dar a notícia a Robert. Ele ficou feliz e talvez um pouco surpreso de que minha irmã tivesse mesmo concordado com sua visita noturna.
__ E ela não impôs nenhuma regra, serio? - questionou, porque era a cara de Lena colocar regras em tudo.
__ Bom, por enquanto, ainda não! - anunciei, e eu também tinha minhas dúvidas de que minha irmã, antes de sair para o hospital, não apareceria com uma lista quilométrica de "regrinhas básicas para se ficar sozinha em casa com o namorado à noite.
Meus planos de passar a tarde com Lena foram frustrados por minha incapacidade de ficar parada muito tempo na frente da televisão.
A noite custou a chegar, a tarde arrastou-se por mim com uma lentidão torturante. Tentei me manter o mais ocupada possível, o que não foi uma tarefa muito fácil, pois eu não tinha muita lição de casa para aquele dia; meu tubo de tinta amarela havia acabado e eu me esquecera de comprar outro, de modo que não dava pra continuar com minha última tela; a internet estava com um problema de conexão e meu cd com minhas músicas favoritas estava emprestado para Tevi Cheng. Isso parecia muito uma conspiração dos astros. A única coisa que me restava fazer era ler algum livro, isso
sempre ajudava a passar o tempo. Peguei meu exemplar de "O Diário de Anne Frank" e me deitei de costas na cama. Não comecei a ler do início, fui direto para o dia 24 de dezembro de 1943, onde Anne escreve minha frase preferida do livro:

"Himmelhoch jauchzend, zu Tode betrübt: No topo do mundo ou nas profundezas do desespero".

E qual não foi minha surpresa, ao ler no rodapé da página, que aquele era um verso de Goethe. Eu já havia lido aquele livro tantas vezes, como eu não havia percebido aquilo antes?
Pulei mais algumas páginas:

"O sol está brilhando, o céu de um azul profundo, há uma brisa magnífica, e estou sentindo falta - realmente sentindo falta - de tudo: conversar, liberdade, amigos, de ficar sozinha... estou numa confusão absoluta, não sei o que ler, o que escrever, o que fazer. Só sei que estou sentindo falta de alguma coisa..."

Incrível como também já me senti assim. Perdida e sentindo falta de algo. Incrível como Robert tornara-se para mim quase que o mesmo antídoto que Peter tornara-se para Anne.
Sempre gostei deste livro e nos últimos meses gostava muito mais. Não importava quantas vezes eu já o tivesse lido ou quantas vezes ainda o leria, as lágrimas eram confirmadas para boa parte do
meio até o final. Hoje não foi diferente.
Ainda estava chorando quando terminei de tomar banho, depois de abandonar o livro em cima da cama. Outras pessoas não entenderiam o sentimento que eu tinha por aquela garota. Anne havia passado por tantas coisas durante a Segunda Guerra Mundial, havia perdido sua casa,
seus amigos, sua vida estável e adorada, para se refugiar em um lugar totalmente
desconhecido; e ainda assim, mesmo com tantas perdas, elas conservava seu espírito forte, sua fé inabalável na vida, sua visão cheia de esperança na certeza de dias melhores, sua vontade de conhecer o amor... Eu só podia sentir uma profunda admiração por ela.
Troquei de roupa, enquanto tentava controlar minhas emoções. Coloquei meu vestido de algodão azul-claro, um dos preferidos de Sara. Ela sempre dizia que eu ficava muito bonita nele e era isso o que eu mais desejava para aquela noite, ficar muito bonita, tanto quanto fosse possível. Deixei o cabelo solto secando naturalmente, coloquei apenas uma presilha antiga e simples de strass do lado esquerdo para dar um efeito.
A noite finalmente insinuava-se pelo céu e minha ansiedade era crescente.
- O que pretendem fazer? - perguntou Lena antes de sair de casa.
Robert ainda não havia chegado, com certeza só apareceria depois que Lena estivesse bem longe.
- Vamos assistir a um DVD! - afirmei categoricamente.
- Qual o nome do filme? - ela estava pegando pesado.
- Deixei que ele escolhesse, mas não será nenhum filme que você não me deixaria assistir!
Ela me olhou com falsa desconfiança, me deu um beijo na bochecha e saiu avisando que chegaria lá pelas duas horas da manhã.
__ Ok! - murmurei, enquanto ela descia as escadas.
Dez minutos depois bateram na porta. Corri pra atender.
Ah, flores desabrochando dentro de mim.
- Entre!
Robert sorria. As lembranças de nossos momentos juntos escapavam de seus olhos inocentes.
- O que tem aí? - perguntei, quando percebi que ele segurava um saco de papel nas mãos.
- Um filme e sorvete de morango com chocolate, nosso preferido! - cochichou em segredo, muito perto de meu ouvido. Mordi o lábio inferior para manter a mente neste mundo e não vagar pelo meu mundo perfeito e improvável que durava apenas alguns minutos por dia.
- Qual o nome do filme? - indaguei, focalizando minha atenção em minhas próprias palavras.
Ele balançou a cabeça.
- Vai ter que esperar até começar, não vou dizer!
- Que coisa mais infantil! - zombei, indo pra cozinha pegar colheres.
Abri a gaveta do armário embaixo da pia, mas não havia nenhuma colher limpa. Olhei dentro da pia e as cinco únicas colheres da casa estavam ali, esperando para serem lavadas. Peguei duas delas e ensaboei com esponja e detergente, abri a torneira e deixei que a água levasse o sabão embora. Desculpei-me com o resto da louça suja dentro da pia e saí da cozinha prometendo-lhes que as lavaria mais tarde, bem mais tarde.
Quando voltei à sala, Robert já havia colocado o DVD dentro do aparelho. A tela estava preta, pronta para iniciar o filme, mas o leitor do aparelho mostrava a palavra "pause".
Ele havia feito aquilo para que eu não visse o plano de fundo do menu principal e assim não descobrisse qual era o filme antes dele começar.
- Muito infantil! - zombei novamente, balançando a cabeça em reprovação, ele se limitou a sorrir.
Ele estava sorrindo com certa facilidade esta noite, isso era bom, era muito bom.
- Uma pra você, uma pra mim. - eu disse estendendo-lhe uma das colheres que segurava.
Apaguei a luz e fomos para o sofá. O pote de sorvete abriu espaço entre nós, colocando um limite para nossa aproximação.
Robert apontou o controle remoto para o DVD e apertou o play e então, alguns segundos de silêncio depois, eu tive que rir.
__ Não acredito que fez isso! - murmurei, os olhos pregados na cena a minha frente.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now