Não tive nenhum sonho.

O dia seguinte amanheceu chuvoso e cinzento. Eu já nem sabia mais em que estação do ano estávamos. Fui até a janela e abri o vidro. O ar pesava e tudo era cor de chumbo. O clima, misteriosamente, parecia ter absorvido meu estado de espírito, trazendo, para o reino do sol, uma frente fria inesperada e deprimente, que refletia, sobre a vida lá fora e nas roupas das pessoas, as cores dentro de mim: preto, marrom, cinza... Eram as cores em minha paleta interior, as cores que compunham a tela funesta de minhas emoções.
Encarei por um longo momento a rua molhada lá fora, as pessoas caminhando na calçada, tentando se esconder embaixo de seus guarda chuvas.
Tentei fingir que tinha sido tudo um grande sonho ruim, apenas um terrível pesadelo: a festa, Ogue, minha quase morte, a morte de Sara...
Mas a dor em meu coração era real demais e não me deixava mentir, não me deixava enganar a mim mesma.

Viajar para Campos do Jordão era algo que não havia passado pela minha cabeça. Jamais chegaríamos a tempo... E, ainda que chegássemos, eu não tinha certeza de que suportaria me despedir.
Lena disse que eu não precisaria ir à escola hoje, que eu podia ficar em casa, e ela pediria dispensa no hospital para ficar comigo. A última coisa que eu queria era ficar em casa, trancada em meu quarto e em silêncio, porque no silêncio eu provavelmente ouviria meus próprios pensamentos e isso poderia ser perturbador, mais perturbador do que enfrentar a vida
e fingir que estava tudo bem, ou quase isso. E, além do mais, eu não queria fazer Lena alterar sua vida por minha causa - ela já havia passado a madrugada inteira acordada em meu quarto.
E eu também não queria ficar em casa com ela, quando poderia ficar na escola com Robert.
Mas eu não podia dizer isso a minha irmã, por isso usei a apresentação do trabalho de
Literatura da dona Celina como justificativa para ter que ir à escola.
- Tem certeza? - Lena me perguntou, quando eu disse que iria me trocar para não chegar atrasada.
- Eu juro que se não estivesse tudo bem, você saberia! - afirmei, com sinceridade.
- Pelo menos coma alguma coisa antes de sair! - pediu.
- Estou sem fome.
- Ísi... o que posso fazer por você?
Respirei fundo.
- Pode agir como se não estivesse com pena de mim. - pedi.
Ela olhou-me ressentida, depois sorriu e concordou com um aceno. Lena deu-me um beijo no alto da cabeça e saiu para o hospital, ainda visivelmente preocupada.
Em pé em meu quarto, parada diante do guarda-roupa, escolhi o que iria vestir. Fui para o banheiro, tomei um banho rápido, me troquei, depois peguei minha mochila e desci. O coração apertado para encontrar Robert.
Ele já esperava por mim. Seus olhos percorreram minha roupa por um instante quando entrei no jipe, depois ele suspirou e deu a partida.
- Apesar da cor, está muito bonita hoje! - ele disse, dobrando a primeira esquina.
Eu sabia que Robert estava querendo ser gentil, porque eu provavelmente devia estar
parecendo uma personagem da família Adans. Escolhi de propósito todas as poucas peças pretas que havia em meu armário, como sinal de luto. Não me importei em estar ridícula ou parecendo uma gótica exagerada e depressiva. Não me importei em usar meia de lã preta com tênis, saia de algodão e minhas luvas de ciclista, cachecol de linho e o único casaco de inverno que eu
havia levado, com o capuz sobre a cabeça. Estava realmente frio hoje. Estranhamente frio. O dia mais frio desde que cheguei ao Rio de Janeiro, e a atmosfera cinérea deixava propício o uso de trajes fúnebres.
- Também está muito bem! - murmurei, virando-me para encará-lo. Robert também usava preto, tudo preto, desde a calça até a camiseta fina de algodão, com gola v, que usava por baixo de uma jaqueta de couro também preta. Mas é claro que ele parecia um galã irresistível, ou um bad boy charmoso, e não um gótico depressivo.
- Como foi sua noite? - ele quis saber. Como Lena passara a noite toda em meu quarto,
Robert não pode aparecer ao amanhecer, mas, sinceramente, acho que mesmo que ele tivesse aparecido eu não o teria visto, porque capotei com os comprimidos.
- Consegui dormir! - resmunguei, olhando pela janela.
- Olhe pra mim - pediu ele suavemente. Eu não queria olhar nos olhos dele. Aqueles olhos que sempre sabiam o que ia em meu coração. Mas como podia negar um pedido feito com aquela voz tão doce e terna?
- O que foi? - perguntei, cravando os olhos nos dele e tentando manter uma expressão firme.
- Quer mesmo fazer isso? Quero dizer, sabe que não precisa ir à escola hoje, não sabe?- ele era tão doce, tão atencioso, e estava me olhando com tanta preocupação agora, que eu só consegui pensar em não sentir droga nenhuma de dor, pra tentar evitar que ele também sofresse.
- Robert... está... está tudo bem, é sério! - tentei não engasgar com as palavras, mas foi
inevitável.
Ele olhou-me, com profunda amargura, minha dor quase deformava seu rosto perfeito.
- Ísi, eu...
- Não! - eu o interrompi. - Não diga que sente muito, por favor, e... não sinta pena de mim. - pedi, tentando me manter forte.
Robert ficou em silêncio, dirigindo pela estrada chuviscada.
Encostei a testa no vidro da janela e também mantive silêncio, seguindo com os olhos, aquele céu cinzento que chorava no meu lugar, seguindo cada gota que respingava como as lágrimas que eu não conseguia derramar.

Meu inferno pessoal. Tudo o que eu queria ter, era exatamente o que faria todo o resto se perder. Tudo se perderia, e, no entanto eu sabia que podia suportar. Por isso sorri, e olhei para ele, meu paraíso proibido.

IntrínsecoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora