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a l a n a

- Ó criança desnaturada, não vês que está de chuva?! - Ouvi a sua doce voz, enquanto calçava o segundo ténis e puxava o casaco.

Levantei-me com a bola num dos braços, já com o casaco e beijei a bochecha da minha avó, que só cruzou os braços ao perceber que era uma guerra perdida. Nos bolsos das calças levava o telemóvel e a chave de casa. Sai da mesma, encontrando do outro lado do portão os culpados.

Descemos a rua com a bola nos pés, entre passes e pequenas fintas trapalhonas. Era a nossa rotina diária, principalmente ás sextas-feiras, quando os seis nos conseguíamos encontrar.

A Catarina era a única prevenida para o temporal que podíamos enfrentar. Aliás, a que achava estar mais protegida, porque com uma rajada de vento não era o chapéu de chuva que a ia salvar. Porém, importava a intenção.

Perto da Marina de Cascais, dirigimos-nos automaticamente para o jardim entre as vivendas luxuosas, com mesas de madeira e um verde bem cuidado em pleno Inverno. Era onde passávamos a maioria das tardes. Entre jogatanas, lanches, a típica cartada ou mesmo só para conversar. Uma rotina criada há muitos anos.

Tornou-se mais difícil com o final do secundário, visto que as nossas vidas mudaram. Ao entrar em enfermagem em Lisboa, precisei de definir bem a minha lista de prioridades.

Brincava com a bola nos pés, vendo a relva colada aos ténis claros que usava, sabendo que os meus avós não iam gostar nada da brincadeira. A Cat virava apenas a cabeça para seguir a bola de pé em pé. Era o meu desporto favorito. Não nasci num berço de ouro, mas num berço benfiquista, a grande paixão dos meus avós.

Cresci com uma bola nos pés e com as bonecas em caixas nos armários. No Natal eram camisolas e equipamentos do Benfica que devolvia brilho ao meu olhar e não kits de maquilhagem. A primeira filha numa família de homens.

Bisavô, avó, pai e tio.

- Soubeste o que aconteceu? - Arqueei a sobrancelha, sentando-me ao lado da Cat. - O teu amigo colorido não te contou?

- Qual amigo colorido, qual quê? - Reclamei. - Ele é só meu amigo, não inventes.

- Todos sabemos que quer ser mais que isso.

- Ignorando o Gui, o que aconteceu mesmo? - Ela mostrou-me um vídeo. - Isso é onde? - Continuei a ver a confusão a desenvolver.

- Em Lisboa. Algures nas Docas. Pelo que soube, abordaram a Cátia da pior forma e os rapazes não hesitaram e protegê-la. O teu querido precisa dos teus miminhos, levou um murro bem dado. - Nas imagens era até visível.

- Problema o dele. - Encolhi os ombros. - Ela nem se pronunciou sobre o ocorrido?

- Claro que já!

Entrou no perfil da rapariga para que ouvíssemos as histórias e o seu relato. Pelo que dizia, negou a companhia dos tais rapazes e eles insistiram. Não respeitaram e acabou por dar em tareia. Afirmou até que nenhum deles estava alcoolizado.

Era fácil reconhecer as pessoas do vídeo por terem andado na mesma escola que nós e porque moravam em Cascais também. Conhecíamos-nos por ser um concelho não tão vasto. Partilhamos a mesma escola, alguns a mesma vizinhança. Eram da mesma geração que nós.

ACASOS  ➛  TIAGO GOUVEIA Onde as histórias ganham vida. Descobre agora