Prólogo

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O céu estava chorando.

Ao menos era assim que eu o interpretava. Não era todo dia que ele nos presenteava com a dança colorida dos Cosmos.

Mesmo no Alasca, contemplar a aparição das tão famosas auroras boreais era algo raro. Talvez porque as mesmas tivessem vontade própria e apreciam somente quando lhes convinha, ou talvez os cientistas tivessem uma explicação menos empírica do que a minha, mas a verdade era uma só: sua beleza imponente nos colocava em uma cápsula reflexiva sobre tudo.

Era isso o que eu estava fazendo, refletindo sobre a recente visita do meu pai e suas consequências.

Sally Daphne del Vicent, mais conhecida como minha melhor amiga, estava deitada ao meu lado, sobre o penhasco que dava para nossa cidade, observando o céu como se não houvesse mais nada no mundo senão aquela viciante e deliciosa dança cosmológica.

— Sabe, talvez não seja tão ruim assim – ela quebrou o silêncio, virei-me para ela e encarei seus lábios finos cobertos por gloss rosa. —Talvez isso seja um presságio. Um bom presságio.

Rolei os olhos, emburrada.

— Desde quando abandonar tudo o que eu conheço é algo bom? Abandonar minha casa, minha cidade, meus amigos... Abandonar você? – contrariada e até um pouco magoada, a respondi. — Não tem nada de bom em ir morar na Califórnia, Sas.

O que era uma grande mentira, mas, dadas as circunstâncias, realmente não era nada legal o que meu pai estava me obrigando a fazer.

Desde quando eu era nada mais que um punhado de células dentro do útero da minha mãe, eu vivia em Archstone, Alasca. Fora os países que já visitei em competições, eu nunca havia saído de fato daqui. Era simplesmente aterrorizante largar minha vida metricamente planejada para ir viver com meu pai, cujo relacionamento comigo beirava a aparições anuais e ligações vez ou outra. O que me confortava, ao menos um pouco, era que meu avô, meu alicerce, iria junto comigo. Mas isso não diminuía o aperto forte contra o meu peito por ter de deixar Sally e nossos amigos para trás.

— Eu sei que parece horrível você se mudar para outro extremo, e, acredite quando digo, é sufocante o quanto eu estou me controlando para não pegar a cara do seu pai e esfolar no asfalto, mas você precisa de novos ares, ma cherie. Você sabe que, por mais tempo que já se tenha passado, esse lugar sempre vai ser como um fantasma na sua vida. Por favor, não negue, Brise, sou sua melhor amiga desde quase sempre e conheço exatamente as suas expressões quando você está prestes a fazer algo, mas simplesmente desiste porque isso lhe causa lembranças terríveis.

Por um lado, o que ela dizia fazia total sentindo, só que ainda não amenizava em nada o medo que eu sentia só de pensar em conhecer novas pessoas. Eu era extremamente terrível quando se tratava de contato social, logo, a probabilidade de conviver com apenas meus avós e meu pai era grande, muito grande.

Fazia aproximadamente duas horas que eu, meu avô e seu marido, Arthur, havíamos deixado meu pai no aeroporto depois de uma terrível conversa. Eu deveria saber que algo não estava certo só por não ter escutado Vovô tocar piano quando cheguei da escola, ou por não receber uma ligação de Art informando que eu tinha quinze minutos para chegar em casa, que era o tempo exato que demoraria para ele tirar a lasanha de berinjela de todas as sextas, do forno

Quando entrei em casa e vi meu pai conversando com minha família, tive certeza de que alguma coisa não estava, definitivamente, em seu devido lugar. Assim que meu avô me viu, levantou-se do pequeno sofá florido e veio me dar um abraço. Ele estava tenso, embora seu sorriso caloroso mostrasse o contrário.

— Brise, querida! Que bom que chegou – ele se voltou novamente para meu pai e arqueou uma de suas sobrancelhas quase totalmente grisalhas. — Seu pai tem algo para contar, não é, Alex?

Alexander Turner Friztgerald, ou, simplesmente Alex, havia me passado sua genética de cabelos lisos e totalmente negros e, embora me custasse dizer, metade do meu temperamento. Apesar da coincidência, ele não era Alex Turner, vocalista de uma das melhores bandas do Reino Unido, era somente meu pai. E esteve ausente cerca de oitenta e sete por cento da minha existência terrestre.

Antes de falar comigo, ele veio até mim e me deu um abraço demorado, o qual me deixou desconfortável e ainda mais desconfiada.

— Você está tão linda, filhota! E tão talentosa! – meu pai pôs seu braço sobre meus ombros e me guiou para o meu próprio sofá. — Assisti todas as suas apresentações de inverno e você estava incrível, querida!

Querida. O substantivo carinhoso vindo de sua boca não era nem de longe tão reconfortante quando vinha de meu avô.

Depois de muito papo furado ele finalmente chegou aonde queria:

— Eu fico imensamente feliz em dizer que você, seu avô e Arthur irão se mudar para a Califórnia, e irão viver comigo! – não era uma pergunta. Droga! Não era ao menos um pedido. Era a merda de um mandato!

Soltei-me de seus braços e me levantei abruptamente, não ligando para a sua cara de frustração. Xinguei-o de todos os palavrões que conhecia em francês, graças a Sally, e o deixei sozinho na minha casa. Três horas depois vovô Hermes me ligou pedindo para voltar para casa, pois iríamos deixar meu pai no aeroporto. Voltei para lá apenas para ouvir da boca do meu avô a mesma barbaridade que meu pai havia insinuado. Tudo por conta de uma bosta de uma guarda em seu nome.

Era oficial, a minha vida no Alasca já era.

Desde então, eu me encontrava no Morro das Almas Sonolentas, nome dado devido à aurora boreal que parecia estar dançando sobre ele, comendo balinhas da máquina de doces do posto de gasolina com Sally.

— Talvez você tenha razão, Sas – falei, por fim. Porém não significava que eu realmente concordasse com aquilo.

— Claro que tenho. Desde quando eu erro nos meus conselhos? – riu e sentou-se. Empurrei meu tronco para frente e encostei a cabeça em seu ombro. — Ainda faltam três meses, mon petit. E eu estarei com você o tempo inteiro, seja aqui, na Califórnia ou na Coréia do Norte.

Ri de seu gracejo e me recusei a chorar. Afinal, ainda me restavam três meses.

Três meses para minha vida mudar totalmente.

~*~

Com amor, Juliana.

Editado e reescrito.

12/09/2016 - 10/06/2017

Por trás do gelo [Em revisão]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora