dois | aithne

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Ele continuou em silêncio

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Ele continuou em silêncio. Por uma fodida hora.

Meu livro continuava em minha mão, mas eu não poderia dizer que estava lendo, isso seria uma grande mentira. Minha visão parecia estar embaralhada para esse assunto, como se as letras das páginas estivessem trocadas. Mas isso não me impediu de fingir estar entretida com o livro. Eu continuava virando as páginas normalmente, meus olhos passavam pelas palavras e linhas, como se eu realmente estivesse lendo. Pelo menos era isso que o homem à minha frente deveria pensar que eu estava fazendo.

Às vezes, enquanto eu estava "lendo", conseguia sentir seu olhar em mim, mas apenas por uns segundos. Mesmo sem olhar em sua direção, sabia que seu cenho estava franzido, como um velho aposentado e divorciado. Eu continuava o ignorando, por mais difícil que fosse.

Eu estava perto de conseguir meu colar de volta. Sentia isso. Quase conseguia sentir o toque familiar da joia em minha mão. Respirei fundo por um momento. Nenhum homem — por mais gostoso que fosse — me desviaria daquilo que eu queria. Eu teria meu colar de volta, esqueceria dessa academia... Como se nada disso tivesse acontecido.

Mas esse silêncio estava ficando irritante...

— O que você é?

Ele olha em minha direção e por um momento perco a habilidade de falar. Suas sobrancelhas se erguem levemente, demonstrando o que parece ser surpresa.

No momento em ele entrou eu percebi que não era humano. Seres sobrenaturais conseguem sentir quando encontram outro, mas o problema é distinguir de qual espécie a outra pessoa era. Mas não era difícil identificar vampiros e lobisomens, essas duas espécies em específico tinham costumes e comportamentos que os entregava facilmente. Vampiros são aqueles metidos e que se acham superiores. Já os lobisomens, são caseiros e muitas vezes confundidos com caipiras que não se aproximam da cidade grande. Durante os anos isso acabou mudando um pouco, e os lobisomens estão camuflados entre os ricos, influentes e estrelas de cinema. Mas, bem, somos animais por natureza, literalmente nos transformamos em lobos, gostamos de uma floresta e o ar sem poluição que o campo nos oferece.

— Vampiro. — Responde ele, após me observar por um tempo. Sua voz, aos meus ouvidos, soava como um ronronado de um antigo amante. O grave de seu timbre quase me fez estremecer no banco, quase.

O homem realmente aparentava ser um vampiro, a elegância e a graciosidade de seus modos mostravam isso. Ele não aparentava ter mais de vinte e sete anos, pelo menos na aparência de seu físico. Fitei seus olhos verdes. Algo que para todos os outros deveria ser apenas íris verdes primavera, mas eu enxergava a profundidade presente ali, enxergava a intimidade da escuridão que dançava em seus olhos. De uma maneira isso era familiar. A perversão geralmente vinha no pacote da imortalidade. Sua pele pálida era como aquelas que os escritores descreviam em seus livros.

— Lobisomem. — Falei mesmo sem ele perguntar.

O vampiro inclina a cabeça para o lado me observando, seus olhos semicerram por um momento, fitando minha postura como se procurasse algo a mais, procurando uma resposta além de minhas palavras.

Sério, vampirinho?

Me virei para o outro lado, estendendo minha mão para abrir o frigobar e pegar uma lata de refrigerante. Sinto o olhar dele em cada movimento que faço, me fitando como se eu fosse uma nova espécie nunca vista antes. Era como se eu pudesse ouvir as engrenagens se movendo em seu cérebro, estudando cada possibilidade e mistérios. Eu tinha virado o projeto de ciências dele ou o que?

— Você não parece ser daqui. — Murmurei abrindo a latinha, dando um longo gole antes de continuar. — De onde você veio?

Um sorriso misterioso instigador surgiu em seu rosto, como se estivesse pensando em uma piada interna. Curioso.

— Longe. Não costumo ficar nessas partes por muito tempo. — Respondeu dando de ombros.

Percebo a resposta evasiva dele. Ele estava a deixando curiosa a cada palavra que saia de sua boca. Era divertido e irritante na mesma porção. Não sabia dizer se ele não queria que os outros soubessem muito sobre quem ele é, ou, se tudo isso era um jogo para deixar os outros interessados em descobrir seus segredos. Ou ele poderia ser uma pessoa reservada, isso também era uma opção. Isso eu entendo. Às vezes, certas coisas são melhores escondidas e ocultas de todos os olhos. Pelo menos por um certo tempo. Nada fica em sigilo para sempre.

Não consigo interrogar o vampiro por mais tempo. Isso porque ele simplesmente se encosta no banco novamente, apoiando a cabeça para trás. Seus olhos estão fechados e eu bufo internamente por ele evitar minhas perguntas.

Meus olhos fitam ele por inteiro, desde seu cabelo escuro quase desalinhado, até seu rosto perfeitamente esculpido. Ele não poderia ser um vampiro esquisito pelo menos? Seus fios escuros estavam um tanto bagunçados, talvez pelo vento que fazia lá fora, mas o homem parecia ter passado a mão por eles algumas vezes, tentando arrumar os fios rebeldes. E seu rosto, bem, suas maçãs eram proeminentes, muito bem delineadas. A mandíbula afiada e com uma notável simetria. Nariz perfeito como o de um aristocrata. Sua blusa de frio terminava na altura de seus ombros, o que deixava a vista uma pele com algumas tatuagens espalhadas ao redor de seu pescoço, e algumas pareciam continuar ao longo de seu peito. Seus braços, que agora estavam cruzados em seu peito, pareciam bem musculosos. E suas mãos descobertas, com longos dedos, também continham algumas tatuagens. Isso deixava uma questão em aberto. Quais outras partes de seu corpo possuíam tinta em sua pele?

Isso com certeza não era importante no momento.

O colar de minha mãe era importante. Eu chegar o mais rápido na Academia Kolthdrys era importante. Esse homem à minha frente? Nem tanto nessa ocasião.

Peguei meu livro de volta. As páginas estavam velhas e amareladas, sua capa era feita de tecido e havia uma fita para fechar o livro. Isso provavelmente deveria estar em um museu histórico, porém, era uma relíquia de família, mais uma. O antigo grimório pertenceu a alguns antepassados, e os feitiços presentes nele eram um tanto quanto interessantes ao meu ver.

Minha família era coberta de morte, maldições e desgraças. Podemos dizer que minha linhagem nunca foi a favorita dos deuses. Com uma família igual a minha, relíquias como essa eram comuns, em minha casa havia outras similares e cheias de magia.

Enrolei a fita de couro envolta do livro, fechando-o antes de guardar de volta em minha bolsa. Repeti os movimentos do vampiro, me reencostando no banco, para tentar dormir um pouco, ou ao menos tirar um cochilo.

 Repeti os movimentos do vampiro, me reencostando no banco, para tentar dormir um pouco, ou ao menos tirar um cochilo

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27/03/2021

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27/03/2021

StygianWhere stories live. Discover now