Get Me Out

By ownthe-night

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Nos últimos dois anos tudo o que eu mais queria era não ter que ir àquele manicômio todos os meses para visit... More

Shadows
Loud Thoughts
Unplanned Changes
Church Bells and Phone Calls
Acknowledging Madness
Dream up, Dash off
Catalyst
Highways, Neighborhoods and Lies
Everything I Want, Everything I Need
Antidepressants and Sense of Humor
Taped Confessions
I Dont Want You To Leave
Wait Outside
Forget the Shelves, See the Irony
Brittle it Shakes
Take Shelter
One love, one house; No shirts, no blouse
Dazed and Kinda Lonely (part I)
Strung out, a Little bit Hazy (part II)
Telekinesis
When did We Grow Old?
Concilium
Tic-Tac
In the Clear Yet? Good.
Rewind
I didn't mean to fall in love tonight
Over (part I)
Red Liquors and Silver Keys
Wednesdays
Hi
Until You Come Back Home
Write it down
Caos, herself

Karma

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By ownthe-night

Tudo girava. Meus olhos ardiam, as pálpebras pesavam e meu corpo parecia pesar mais do que eu conseguia carregar. Respirei fundo tentando lembrar o que havia acontecido, mas nada vinha em mente.

Coloquei uma mão na frente do rosto e tentei ajustar meu foco visual encarando meus dedos. Ao levantar o braço, senti algo beliscar minha pele e só então percebi o cateter preso por uma agulha em meu membro direito. Uma bolsa de soro fisiológico estava pendurada ao lado da cama com a ajuda de um suporte, e o som quase mudo do líquido escorrendo da bolsa até a agulha me fazia questionar o que diabos havia acontecido.

Ao tentar arrancar o esparadrapo colado por cima do objeto pontiagudo que furava minha pele, escuto uma voz ecoar ao meu lado.

“Eu teria cuidado com isso se fosse você.” Ela sorri diante da minha clara confusão. “Você está bem?”

Fechei os olhos como reflexo ao sentir uma pontada na cabeça. O objeto macio que sustentava meu corpo fazia minha dor nas costas agradecer. Encarei o teto do cômodo onde eu me encontrava.

“Onde eu tô?”

“Você desmaiou no lobby”, a voz parecia mais calma agora que eu aparentava ter recobrado a consciência por completo.

“O quê?”

“Você está na enfermaria, querida”, ela fala se afastando e puxa uma cadeira para sentar ao meu lado. O barulho da mobília de ferro sendo arrastada contra o piso frio me faz tremer.  

“Camila...” Balbuciei.

Dinah crispa os lábios ao ouvir o nome. Pouco a pouco meu subconsciente volta ao normal e eu começo a lembrar dos últimos fatos ocorridos antes da minha visão não passar de um borrão.

“Você precisa ficar calma”, ela diz em um tom irritantemente angelical.

“Ela fugiu”, falei indignada. “Como diabos ela fugiu?!”

“Nós não sabemos... Ontem à noite nós estávamos checando pela última vez os pacientes antes de fecharmos a ala dos dormitórios, mas ela havia simplesmente sumido.”

Engoli seco tentando entender o que se passava na cabeça de Camila. Ela me fez prometer que eu não iria me afastar e menos de 24 horas depois, ela faz exatamente o oposto do que havíamos combinado.

“Eu posso buscar um copo d’água pra você?”

A encarei confusa. Levantei brevemente do colchão e apoiei o peso do meu tronco sobre os cotovelos. A agulha pinicando contra minha pele não me incomodava tanto quanto o instinto maternal da mulher sentada em minha frente.

“Eu posso pedir pra que preparem alguma coisa pra você comer”, ela continua. “O médico que te examinou falou que você está praticamente anêmica.”

Uni as sobrancelhas. Isso era literalmente uma versão 2.0 do que havia acontecido no Kings Park com Naomi. A bondade em excesso, o sentimento ridículo de pena, a querida gentileza de oferecer um copo d’água na tentativa de me tranquilizar e o pedido infeliz e inoportuno pra que eu me acalmasse em uma situação caótica.

“Não”, falei firme. “Eu não quero água, muito menos comida.”

Balancei a cabeça tentando levantar –, o que era uma tarefa bem difícil, considerando o fato de que meus ossos pareciam gelatina e minha visão girava como se eu estivesse presa em um carrossel. Pela minha visão periférica eu pude ver que ela havia levantado da cadeira e estava prestar a tentar me impedir de levantar.

“Lauren—”

“Não!” Apoiei as mãos sobre a cama tentando encontrar equilíbrio. “Eu tenho que achar ela. Ela precisa de mim, ela precisa de alguém, a pobrezinha deve estar sozinha no meio dessa estrada sem fim e ela é tão frágil... Ally. Eu preciso ligar pra Ally. Ela vai saber o que fazer, ela sempre sabe...”

“Lauren...”

“Sofia”, minha voz treme. “Eu tenho que avisá-la e eu preciso ligar pra Taylor. Minha irmã precisa saber o que está acontecendo, ela não pode—”

Lauren.” A mão firme, e de certa forma gentil, sobre o meu ombro me fazem parar. “Está tudo bem, ok? Mila é esperta. Ela sabe pra quem deve pedir ajuda e eu tenho certeza de que ela não é tão frágil quanto você acha.”

“Mas Dinah, eu preciso—”

“Shh... Eu sei que você precisa”, ela sorri levantando meu queixo com o indicador. “Eu sei. Mas você também precisa entender que você não está em condições de ajudá-la no momento.

Pisquei algumas vezes na tentativa de fazer o quarto parar de girar. A mão ágil de Dinah segura o meu rosto com delicadeza, e passa os polegares em baixo de meus olhos.

“Engole o choro, garota”, ela sorri. “Nós vamos encontrar ela, ok?”

Não pude evitar de lembrar a imagem de Ally fazendo o mesmo no elevador, logo após a audiência.

Após alguns segundos debatendo internamente contra meu orgulho e razão, eu decidi dançar conforme a música:

“Ok.”

“Ótimo. E hey, eu quero que você ajude. Acredite em mim, eu realmente quero. Mas nós precisamos nos certificar de que você esteja bem, ok?”

“Ok.”

“Certo, você consegue sentar?” Ela indaga colocando a mão nas minhas costas como suporte. “É só um exame rápido.”

Senti o cômodo girar novamente ao meu redor ao colocar as duas pernas pra fora da maca.

“Levante o queixo, ajuste a postura e respire fundo”, a voz gentil instruiu enquanto ela pegava um estetoscópio e colocava a ponta do objeto do lado esquerdo do meu peito. “Se você acha que isso é respirar fundo, nós estamos com problemas.”

Sorri antes de puxar o ar com mais força para dentro dos pulmões. Ela assente depois de eu repetir o processo três vezes.

“Você sente dor?”

“Um pouco.”

“Dor de cabeça?”

“Em tudo.”

“Oh... Bom, eu vou te dar alguns analgésicos e pedir pras meninas da cafeteria fazerem uma sopa.”

Eu me sentia como se tivesse três anos, mas ser amparada, cuidada e protegida em uma hora como aquelas valia muito mais do que eu podia expressar.

Depois de retirar o cateter e a agulha do meu braço, me ajudar a levantar e esperar pacientemente minha tontura passar até que pudéssemos descer as escadas, nós finalmente fomos em direção ao refeitório.

“Espera aqui, ok?” Dinah pediu logo depois de me ajudar a sentar em uma das bancadas de madeira. Não havia absolutamente ninguém a essa hora da manhã, e apenas o barulho distinto de panelas batendo na cozinha ao lado podia ser ouvido. “Eu já volto.”

Assenti apoiando a testa contra a mesa. Eu ainda não havia tomado a medicação que ela havia prometido, então minha dor de cabeça ainda estava longe de passar.

“Hey”, uma voz baixinha soou ao meu lado. Pisquei algumas vezes antes de levantar meu rosto.

Beth.

O emaranhado de cachos escuros cobria boa parte do par de olhos arregalados. Estava descalça, tremia e abraçava um ursinho de pelúcia surrado. Pela primeira vez em semanas eu presenciei algo diferente nas órbitas claras.

Medo.

“Beth?” Engoli seco ao ver a figura ainda de pé parada ao meu lado. “Você está sozinha?”

Ela balançou a cabeça indicando que sim. Meu estômago fez um nó ao perceber que ela só vestia uma calça fina de moletom e um casaco de lã. Talvez fosse apenas o calor do momento, ou até mesmo meu instinto materno, mas eu simplesmente não conseguia ver aquilo sem fazer absolutamente nada.

“Vem cá”, afastei meu corpo da bancada e abri os braços na tentativa de fazê-la se aproximar.

Ela caminhou em minha direção fechando o espaço que havia entre nós e em um movimento rápido eu pude colocá-la sobre o meu colo.

“Por que você está sem meias e descalça nesse frio?” Perguntei.

“Camila cuidava disso.”

Oh.

“É por isso que os policiais estão aqui?”

Respirei fundo a puxando para mais perto. O que ela tinha de delicadeza e fragilidade também tinha de esperteza ao elaborar perguntas.

“Aham. É sim.”

Ela solta um riso fraco contra o meu casaco ao ouvir aquilo.

“Não se preocupa. Ela vai voltar.”

“O quê?”

“Ela vai voltar”, a garota repete.

“Como você sabe?”

“Karma.”

Karma?” Foi a minha vez de rir.

Você prometeu que não iria se afastar. Ela não prometeu isso. Então é o seu trabalho não se afastar dela quando ela voltar”, Beth sorri. “Ela vai precisar de ajuda quando aparecer.”

O nó que havia se formado na minha cabeça e a lista de perguntas sobre como ela sabia daquilo era gigante.

“Ajuda?”

“Não se afaste dela”, os olhos azuis fixados nos meus. “Eu sei que você já prometeu isso à ela, mas você precisa prometer à mim também.”

“Beth—”

“Promete?” A urgência no tom de voz me alarmou. 

“Prometo”, falei. “Prometo.”

Ela sorri aliviada e apoia a cabeça no meu ombro. Eu realmente não estava entendendo o que ela quis dizer com tudo aquilo – especialmente a parte da promessa –, mas de certa forma eu não fazia questão. Em um dos áudios da terapia que Camila frequentava, ela mesma havia falado que suspeitava que Beth era exatamente como ela. Se Camila achava isso, por que raios eu duvidaria?

“Que tipo de karma?” Indaguei incerta.

“O mesmo que trará ela de volta, tentará tirar ela de você novamente. Por isso você precisa me prometer que não vai se afastar.”

Permaneci em silêncio tentando absorver o que havia acabado de ouvir.

“Olá, bagunceiras”, Dinah falou se aproximando de nós carregando uma tigela e uma colher em mãos.

“Você quer também?” Indaguei encarando as expressões relaxadas da menina em meu colo.

Ela assente dando um sorriso de orelha a orelha enquanto observa Dinah colocar o prato fundo com o líquido escaldante e duas colheres à nossa frente.

“Eu ouvi ela falando com você quando entrei na cozinha. Imaginei que ela também ia querer”, ela aponta para a mesa explicando o talher extra.

“Por que você não pega uma tigela e senta aqui com a gente?” Ofereci.

“Pra uma pessoa que não queria nem um copo d’água, até que você tá me surpreendendo”, Dinah ri. “Mas não, eu já comi. Ver você bancando a mamãe até a Mila voltar é mais divertido.”

Rolei os olhos.

“Eu preciso perguntar uma coisa”, falei enquanto assoprava a sopa e mexia os legumes cuidadosamente com a colher.

“Diga”, a enfermeira diz sentando ao nosso lado.

“Existe alguma possibilidade de alguém ter ajudado ela a escapar?”

Dinah apoia o cotovelo direito sobre a mesa e me oferece um sorriso triste. Beth tenta disfarçar o riso arteiro arriscando uma colherada da sopa.

“Provavelmente. Só do quarto dela até o lobby são pelo menos umas cinco portas cadeadas. Se ela conseguiu sozinha eu realmente preciso dar os parabéns, por que sair daqui sem a ajuda de alguém é praticamente impossível. E eu sei que ela faz e... certas coisas, mas... Mesmo assim.”

“Do que você está rindo, mocinha?” Uni as sobrancelhas diante da expressão travessa que Beth tinha no rosto.

“Eu conheço Camila há pouco tempo, e em nenhum momento ela usou os dons que ela tinha pra fazer absolutamente nada aqui dentro”, ela explica.

“Beth”, Dinah estala os dedos na frente dela. “Português, por favor.”

A garotinha ri.

“Por exemplo, nós sempre íamos na biblioteca um pouco antes da hora de dormir. Às vezes eu pedia pra que ela me lesse livros que ficavam lá em cima, nas prateleiras mais altas. Ela podia simplesmente fazer com que o livro caísse daquela altura, mas ela fazia questão de ser uma pessoa normal e pegava uma escada de quase dois metros pra poder me alcançar o que eu quisesse.”

“Eu ainda não entendo...” Dinah murmurou.

“O que eu tô dizendo é que... Dessa vez foi diferente. Ela não teve a ajuda de ninguém.”

Franzi a testa e troquei olhares com a enfermeira sentada à nossa frente.

“Você... Você quer dizer que ela abriu os cadeados e fez o guarda que cuida do portão da entrada cair no sono pra que ela saísse?”

“É... Algo assim”, ela ri.

“Ela te contou que faria isso?”

“Não.”

“E como é que você sabe disso tudo?” Dinah indaga.

“Eu vejo umas coisas aí.”

O déjà vu das palavras me fez rir internamente.

“Você deve comer, isso sim. Fique aí com a Lo, eu vou buscar um par de meias pra você”, ela fala levantando da bancada. “Você me espera aqui?”

“Espero sim”, sorri. “Pode ir, eu cuido dela.”

“Eu pararia de pensar nela se fosse você” Beth diz assim que Dinah desaparece na porta do refeitório.

“O quê?”

“Camila. Você fica pensando nela o tempo todo e eu escuto.”

“Cristo, você é igual a ela. Pare de ler meus pensamentos, garota.”

“Não é por mal!” Ela ri. “Eu não tenho culpa se você passa o dia inteiro pensando nela. Ou em como ela é bonita e você não vê a hora de abraçar ela de novo e—”

Ok, mocinha, já chega.”

~~

Na parte da tarde eu resolvi ligar para Taylor e Ally. Minha irmã literalmente deu um grito de felicidade do outro lado da linha quando ouviu a notícia, e por um lado eu fiquei feliz por proporcionar um momento de felicidade em uma semana como aquela. Talvez ela não havia entendido a gravidade da situação e apenas ficou eufórica com o fato de que a amiga finalmente havia sucedido em uma das inúmeras tentativas de escape, então eu apenas ouvi os gritos de histeria até que ela passasse o telefone para Ally e a advogada acabasse com o ápice de alegria que ela estava tendo.

“Isso não podia ter acontecido em uma hora pior”, foi a única coisa que a texana falou.

Eu passei um bom tempo tentando convencer as duas a não darem as caras na clínica – por motivos óbvios– , e aparentemente elas entenderam meus motivos.

Eu sabia que era uma situação 50/50 –, onde metade de mim estava tão feliz quanto minha irmã, e a outra estava tão preocupada quanto Ally. Mas eu também sabia que era de Camila que estávamos falando. A mulher esperta, durona, que aguentou mundos e fundos por quase dez anos. No momento em que ela colocou os pés fora daquela clínica, ela sabia exatamente no que estava se metendo.

E eu deveria estar ok com isso.

O único problema é que eu realmente não estava. Os policiais já deveriam estar exaustos com a quantidade de rondas que haviam sido feitas nos arredores da clínica em um só dia, e eu sinceramente não os culpava. Achar ela estava literalmente à beira do impossível.

O relato que foi dado falava que eles haviam percebido o sumiço de Camila por volta das 22:00hrs, então fazendo um cálculo rápido eu tinha dois palpites: Ela passou a noite à beira da estrada e resolveu seguir caminho assim que amanhecesse, ou ela simplesmente passou a madrugada inteira perambulando por chão batido até que achasse uma alma bondosa que a ajudasse.

E o fato de que os policiais só chegaram na clínica na primeira hora da manhã apenas reforçava minhas suspeitas de que ela já deveria estar muito, muito longe daqui.

Outra coisa que me preocupava mais ainda era o tempo. Por volta das seis horas da tarde um verdadeiro temporal atingiu a cidade, e a única coisa que eu conseguia pensar era na imagem de uma fugitiva ensopada caminhando pelo acostamento precário que a rota oferecia.

A grade que apartava o lobby interno da escadaria do pátio permaneceu fechada o dia inteiro e aquilo já estava me dando nos nervos.

“Os policiais já chegaram?” Dinah perguntou se aproximando de mim.

“Não. Eu duvido muito que eles voltem”, falei apoiando a testa contra as barras de ferro.

“Você não sabe disso.”

“Dinah, está caindo o mundo lá fora. Tá sentindo esse cheiro?” Indaguei irritada. “É cheiro de chuva. Se ela não encontrou um abrigo até agora é muito provável que ela esteja encharcada e lutando contra uma pneumonia.”

“Tecnicamente não é o cheiro de chuva, mas sim o cheiro de terra molhad—”

Dinah.”

“Tudo bem, eu paro”, ela coloca uma mão sobre o meu ombro e sorri diante do meu estado emocional. “Ela vai voltar, ok?”

“Você não sabe disso”, ri sem humor. “Você realmente não vai me deixar sair?”

“Com essa chuva? Ahn... Não. Eu posso ser sua amiga, mas eu não sou louca de te deixar dirigir nesse tempo. Aliás, se eu fosse você eu definitivamente ligaria para a sua irmã avisando que você vai passar a noite aqui caso esse temporal não passe.”

“Uau... Quando eu achava que a minha vida não podia ficar mais ridícula.”

“Eu só estou cuidando de você agora pra que você possa cuidar dela depois. É só isso.”

“Então reze pra que ainda exista uma Camila que eu possa cuidar”, falei entre dentes. “Nossa sorte anda bem irônica ultimamente.”

~~

Já passava das 23:00hrs quando eu decidi sair da grade e ir em direção à sala de espera. A movimentação na clínica havia diminuído consideravelmente de umas horas para cá, e a única companhia que eu tinha no momento era do vai e vem de funcionários nos corredores, se certificando de que todos os outros pacientes permanecessem em seus quartos e devidos aposentos.

Estiquei minhas pernas no sofá gasto que ficava no canto da sala. A televisão permanecia ligada apenas para apresentar o show de chuviscos e fantasmas que a chuva do lado de fora causava.

Fechei meus olhos por alguns segundos sentindo meu corpo relaxar pouco a pouco com a calmaria. Já havia se passado um dia desde o sumiço dela e tudo o que eu conseguia pensar era no pior. Na tragédia e todo o drama depois disso.

Os motivos que a levaram a fazer aquilo definitivamente não eram um mistério, e eu entendia a frustração que ela deveria ter sentido quando eu falei que havíamos perdido a causa. Mas havia tantas coisas ligadas a isso que, se eu realmente parasse pra pensar, eu poderia julgar aquilo como um enigma.

A vitória roubada. A promessa que Ally fez no elevador assim que saímos do fórum. A promessa que Camila me fez fazer diante de lágrimas e pura certeza de que ambas iríamos cumpri-la. O jogo de horas em que as coisas aconteceram. A fuga abrupta. O suposto karma pelo qual eu passaria que Beth havia citado.

Minha mente estava a ponto de explodir com a quantidade de informações que eu havia adquirido nos últimos dias.

“Não vai demorar muito”, a voz familiar preencheu meus ouvidos. Arregalei os olhos com a súbita entrada da garota.

“O quê?”

“Seu chá. Dinah pediu que fizessem pra você”, ela sorri.

“Oh... Ok.”

“Eu posso ficar aqui?”

“Claro que pode”, ri batendo a mão sobre a ponta estofado. “Vem cá.”

“Sua dor de cabeça passou?” A escuto indagar. A ponta dos dedinhos delicados tocando suavemente a minha testa.

“Passou”, sorri. “O que você fez a tarde inteira? Eu não te vi depois do refeitório.”

“Sala de jogos”, explica. “A TV de lá é maior.”

“Ver TV. Soa como uma tarde melhor do que a que eu tive.”

“Não fala isso. Eu já falei que ela vai voltar.”

“Você repete isso com tanta convicção que eu realmente estou começando a acreditar.”

“E você deve.”

Respirei fundo e sentei recostando as costas na mobília acolchoada. Ela observa meus movimentos e sorri de uma forma misteriosa, vaga, abstrata. Completamente indistinta e impossível de decifrar.

“Você é uma boa pessoa, Lauren”, Beth diz depois de algum tempo de silêncio.

“Eu sou?”

“Sim, você é. Eu fico surpresa com o quanto você se importa com ela.”

“Ela não tem ninguém.”

“Bom, ela tem a você. É o suficiente.”

“Você é muito fofa, sabia?” Baguncei o cabelo castanho recebendo um sorriso casto como resposta.

“Eu queria que vocês ficassem juntas”, ela diz.

“O quê?”

“Você e Camila. Eu gosto de ver ela feliz. Você a deixa feliz”, completa.

“Eu posso dizer que é mútuo”, ri.

“O que é mútuo?”

“Algo que parte dos dois lados. Quer dizer que ela também me deixa feliz.”

“Oh... Então você gosta dela?” O sorriso bobo e angelical estampado no rosto delicado me faziam questionar a real idade dela. A esperteza e a perspicácia daquele ser tão pequeno me fascinava.

“Sim. Beth. Eu gosto dela.”

“Então talvez você já deve estar pronta”, ela sorri.

Eu estava prestes a perguntar o que ela quis dizer com aquilo quando uma gritaria começou a ecoar no lobby.

“Não sai daqui”, instruí Beth.

Ela assente com a expressão neutra. Tive a impressão de que ela já sabia exatamente o que estava prestes a acontecer.

A passos rápidos e longos eu cruzei com Dinah no corredor.

“O que raios está acontecendo?” Perguntei aflita.

“Os policiais... Eles... Um carro passou por eles e...” O estresse e nervosismo evidente no tom de voz.

“Dinah você está me assustando.”

“Acharam ela”, a enfermeira finalmente fala. “Acharam ela, Lauren.”

O ar pareceu sumir dos meus pulmões. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

“O quê? Quem... Quem te disse isso?”

“O monsenhor”, ela me puxa em direção à grade e retira o molho de chaves do bolso. “Ele está lá em cima no telefone com os policiais...”

A chuva estava cada vez pior e eu realmente estava surpresa pelo fato de que os dois homens fardados que estavam aqui hoje à tarde continuaram procurando por ela. Dinah por outro lado, tentava inutilmente abrir o cadeado com o par de mãos trêmulas.

“Aqui, deixa que eu tento”, falei puxando a chave.

Ela respira fundo enquanto eu giro a peça metálica com facilidade. Após um puxão na grade, o clique da fechadura finalmente abre e nós duas caminhamos até a área coberta à procura de algum carro aproximando os arredores.

“Onde está Beth?” Dinah pergunta alarmada.

“Eu pedi a ela que ficasse na sala de estar. Não é bom que ela veja... Seja lá o que for.”

Em uma questão de poucos minutos, as luzes cintilantes dos faróis de um carro preto iluminaram o portão de entrada da clínica. Era extremamente difícil ver quem estava na direção por causa dos vidros escuros, mas eu sabia exatamente quem poderia estar lá dentro.

“Você acha que é ela?” Dinah perguntou arriscando alguns passos à frente.

Eu sabia que era ela. Eu simplesmente sentia.

O guarda que ficava na casinha minúscula de tijolos ao lado da grade saiu correndo em direção ao portão para abrir o cadeado, e antes que eu pudesse processar, o carro já estava sendo estacionado próximo das escadas.

A ironia de eu ter tido uma crise claustrofóbica em uma área livre de paredes era ridícula. Minhas pernas se moviam sozinhas e os pingos incessantes do temporal encharcaram minha roupa em segundos no momento em que eu saí da área coberta.

A porta do veículo se abriu e a figura masculina que estava dirigindo pulou para fora. A expressão atordoada e ligeiramente confusa. As mãos aparentemente fortes abriram a porta de trás com rapidez e eu juro por Deus que eu pude sentir meu coração parar no mesmo instante.

O corpo completamente inerte encolhido no banco traseiro. Os cabelos encharcados, a pele exposta do rosto azulada pelo frio.

“Eu estava passando por aqui perto e ela simplesmente surgiu do nada... A estrada estava lisa demais e eu não consegui frear...”

“VOCÊ ATROPELOU ELA?!” Gritei completamente aturdida pelas palavras do desconhecido. Escancarei a porta e bati meus joelhos contra o chão enquanto minhas mãos examinavam o rosto pálido.

Havia um corte profundo na testa. O sangue escorria lentamente pela têmpora até chegar ao pescoço e a gola da blusa clara se encontrava completamente encharcada pelo líquido vermelho. As juntas da mão estavam arranhadas e a ponta dos dedos possuía uma coloração roxa.

“Eu não sabia pra onde levá-la... Então eu assumi que ela era daqui.”

A cena era demais pra mim.

Arregalei os olhos quando o estranho abriu a porta traseira do outro lado e me encarou.

“Eu vou precisar de ajuda”, ele fala enquanto começava a puxar o corpo imóvel para fora do carro.

Contornei o veículo em questão de três passos e por pouco meus pés não resvalam na pedra ensopada. Tentei apoiar a cabeça dela em meu braço pra evitar que mais danos acontecessem do caminho do carro até o lobby, e senti meu estômago embrulhar ao ver o homem pegando a figura tão frágil com facilidade nos braços.

“Lauren!” Escuto Dinah gritar atrás de nós. “Oh meu Deus...”

A enfermeira aponta para as escadas indicando o desconhecido a subir os degraus rapidamente antes que pegássemos mais chuva ainda. O monsenhor nos observava apreensivo da área coberta e fazia um sinal estranho com a mão em nossa direção.

Depois de passos curtos e objetivos até o lobby, o homem finalmente largou Camila no piso frio. Sem pensar duas vezes me ajoelhei no chão e usei o meu colo como travesseiro.

Eu estava extremamente grata por eu estar ensopada e minhas lágrimas terem sido confundidas com chuva, porque eu simplesmente não conseguia me ver chorando deliberadamente na frente de todas as pessoas que haviam se juntado ao nosso redor.

“Ela está desmaiada”, ele fala. “Eu não sei o que aconteceu, ela simplesmente pulou na frente do carro...”

“Não se preocupe, nós vamos fazer o possível pra que ela—”

“Mas é óbvio que você vai fazer o possível”, Dinah corta o monsenhor. “E o impossível também se for preciso!”

“Alguém pode me explicar o que está acontecendo, quem é essa mulher que pulou na frente do meu carro?” Ele pergunta aflito.

“O nome dela é Camila e ela fugiu daqui ontem à noite”, expliquei irritada pela falação ao meu redor. “E eu tenho certeza que ela não pulou na frente do seu carro.”

“Camila”, ele repete mais para si. Por algum motivo eu senti uma sensação de nojo ao ouvir o nome dela ser verbalizado por ele.

“Mas que droga, será que ninguém pode chamar a porcaria de uma ambulância?!” Dinah grita indo em direção ao balcão. Os braços trêmulos pegam o telefone de trás da bancada e minha cabeça gira ao ouvir o barulho do aparelho sendo batido com força contra a madeira.

“Os policiais devem estar aqui a qualquer momento”, um dos funcionários surgiu atrás de nós. “Eles querem conversar com o senhor.”

O homem assente firmemente sem tirar os olhos do corpo sem vida no chão.

“O que vocês precisarem... Eu... Eu só quero me certificar de que ela fique bem.”

Rolei meus olhos diante das palavras. Minha preocupação maior era saber se na hora do impacto Camila havia sofrido algum dano interno maior do que esperávamos, e eu mal conseguia contar os segundos para que a maldita de uma ambulância chegasse até a clínica.

“Camila... Camz...” Murmurei sentindo meus olhos arderem. “Camzi... Eu preciso que você acorde...” Retirei os fios molhados sobre o corte. Minhas mãos segurando o rosto firmemente. “Eu preciso que você fique bem, meu amor...”

“A ambulância não deve demorar”, escutei Dinah falar do outro lado do lobby. “De dez a vinte minutos, eles prometeram.”

“Vinte minutos?!” Gritei.

“Eu acho melhor nós colocarmos ela em uma cama”, o monsenhor sugeriu.

“Não”, falei firme. “Não, não mexam nela. Não toquem em nada. Deixem o corpo dela exatamente onde está”, respirei fundo sentindo as lágrimas queimarem minhas bochechas. “Ela já sofreu danos demais, quanto menos nós movermos ela, melhor.”

“Ela tem razão”, Dinah falou se abaixando ao meu lado. A mão gentil colocando meus cabelos ensopados para trás. “Ninguém vai mexer nela, ok?” Ela me garante enquanto depositava um beijo no topo da minha cabeça. “Ninguém vai mexer nela. Fica tranquila.”

Os minutos seguintes pareciam se arrastar e eu estava ficando agoniada em ver a mulher mais linda e sorridente que eu havia conhecido na vida, completamente morta no chão daquele lugar.

O corte na testa parecia ter estancado naturalmente, e a trilha de sangue seco que havia se formado na lateral do rosto, manchava a pele gelada. Em nenhum momento Dinah saiu do meu lado ou desapareceu sem falar onde ia. Eu não tenho dúvidas que isso foi um dos principais fatos pelo qual eu suportei a demora interminável da ambulância que havia sido chamada.

“Você acha que ela vai acordar?” Perguntei para a mulher ao meu lado enquanto acariciava a bochecha de Camila. O pensamento mórbido não parecia tão assustador depois de vê-la estirada e completamente imóvel no chão por incontáveis minutos.

“Eu geralmente sou educada, mas agora eu realmente vou precisar que você cale a boca”, ela diz irritada. “Eu não tenho dúvidas de que ela vai acordar, pare com isso.”

Engoli seco ao ouvir a voz irritante do homem que havia trazido Camila de volta. Ele caminhava de um lado para o outro com o celular preso entre a orelha e o ombro. Nem o frio que eu sentia me incomodava tanto quanto o barulho irritante do calçado batendo contra o piso.

“Podia ser pior”, falei. “Ela podia não estar aqui.”

“Lauren...”

“Eu não entendo, Dinah... Por que coisas ruins só acontecem com pessoas boas. Por que ela precisa passar por tudo isso... Eu não... Eu simplesmente não entendo.”

“Eu não... Eu não sei, querida.”

“Por que ela não acorda? Por que ela não acorda?! Já fazem o quê? Dez minutos? Meia hora? Por que ela não acorda, Dinah?!”

“A ambulância chegou!” Um funcionário gritou encarando a grade. Meu peito queimava a cada vez que eu tentava puxar ar para os pulmões.

“Você pode ir com ela”, Dinah fala em meu ouvido. “Eu cuido das coisas por aqui.”

Assenti furiosamente com os olhos arregalados. Agora que a ambulância já estava sendo estacionada ao lado da escadaria, eu não sabia exatamente o que estava prestes a acontecer.

“Eu...”

“Vai ficar tudo bem”, ela aperta meu ombro antes de levantar e ir até a porta.

Antes que eu pudesse entender o que se passava ao meu redor, três paramédicos entraram às pressas no lobby. Os movimentos rápidos e precisos ao tirarem Camila de meus braços me deixaram instantaneamente atordoada.

“Qual o nome dela?” Ouvi o paramédico indagar.

“Camila”, respondi enrolando a língua. Levantei com dificuldade devido à dormência das minhas pernas por causa da posição em que eu havia ficado. “Camila Cabello.”

“O que aconteceu exatamente?” Ele pergunta enquanto ajustava o corpo de Camila na maca.

“Foi um acidente”, o responsável pela tragédia falou me cortando. “Ela se atravessou na frente do meu carro e eu acabei não vendo.”

O paramédico assente fazendo um sinal para que os outros dois levantem a maca e levem em direção à ambulância.

“Alguém vai acompanhar a moça?” O enfermeiro pergunta.

“Eu”, o homem fala.

A quantidade de nãos que eu pronunciei mentalmente após ouvir aquilo foi atípica.

“Não, eu vou com ela”, falei vendo a maca desaparecendo na porta. Eu tinha poucos segundos até que eles fechassem as portas traseiras do veículo e levassem ela para o hospital, e ainda sim eu precisava debater a decisão mais óbvia da noite com um desconhecido responsável por atropelá-la.

“Mas eu—”

“Eu não faço a menor ideia de quem você seja, mas eu realmente não me importo. Eu vou com ela, e de preferência eu gostaria que você ficasse aqui”, agradeci mentalmente por minha voz ter soado mais firme do que eu havia planejado.

“Austin”, ele diz.

“O quê?”

“Você disse que não sabia quem eu era”, ele estende a mão para me cumprimentar. “Austin.”

Permaneci em silêncio e torci o nariz diante do gesto.

“É você que vai com ela então?” O paramédico pergunta novamente.

Assenti o seguindo para fora da clínica. A chuva incessante encharcou meu cabelo novamente e após descer a escadaria em uma velocidade desumana, eu finalmente me vi sentada dentro do veículo. A imagem de Camila na maca, entubada e com inúmeros fios conectados ao peito era algo que eu jamais conseguiria deletar de minha mente.

O barulho das portas se fechando me fez pular no banco e poucos segundos depois eu escuto a sirene ligar e a ambulância entrar em movimento.

Depois de tudo aquilo, os meus dois maiores desejos do momento eram; Chegar ao hospital a tempo, e que Austin realmente não fosse a pessoa de quem Beth estava falando mais cedo.

 Afinal de contas, é como diz o velho ditado: Karma é uma vadia.

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