Capítulo 42

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Na tarde em que tudo aconteceu, o sol estava intenso e o céu de um azul belíssimo. Meus tios e tias tinham ido à cachoeira com os sobrinhos, mas infelizmente Jaime e eu chegamos à casa dos meus avós quando eles já haviam saído. Muitos iam de charrete, outros com o próprio cavalo e outros ainda de bicicleta.

— Ah, eu queria ir. — Jaime começou a choramingar.

— Eu te levo. —  Falei — Vamos de bicicleta. Eu sei onde é.

Com a permissão dos nossos pais, peguei a monark azul, que era bem melhor do que minha bicicleta, e parti pelas estradas empoeiradas. O capim estava ficando seco, as cercas e porteiras estavam cheias de poeira amarela e as flores da primavera caíam ao redor de nós, sobre as folhas secas, como um tapete colorido.

Jaime adorava passar por alguns lugares e parar sobre as sombras para colher melão-de-são-caetano, maria-pretinha e pau-doce. Colocávamos aquelas frutinhas em folhas de inhame ou nas blusas, depois lavávamos em minas d'água que existiam nas beiras dos morros. Isso porque eu estava crescida e ensinava a ele que comer sem lavar dava lombriga, pois antes nem pensava nisso. A poeira acabava sendo parte do tempero.

Chegamos à cachoeira após alguns minutos pedalando, brincando com dentes-de-leão que voavam sobre nossas cabeças. O lugar era uma clareira fria e com muito pouca luz na entrada. Tinha cheiro de mato fresco e não de terra, um cheiro adocicado das frutas das árvores ao redor de nós.

— Passa com cuidado. — Avisei a Jaime, erguendo o arame farpado da cerca para que ele pudesse passar — E fica na parte rasa, cê ainda não sabe nadar direito!

Prendi a bicicleta na cerca e passei depois dele. Ouvi logo aquela conhecida voz vinda do interior da clareira:

"Você é minha doce amada, minha alegria, meu conto de fadas, minha fantasia, a paz que eu preciso pra sobreviver..."

Me aproximei e encontrei tia Lenira sentada sob uma árvore. Estava cantando e descascando laranjas para a filha. Fernandinha estava sentada à sua frente se deliciando com as frutas e com a voz da mãe. Logo me abriu um sorriso com seu rostinho sujo do sumo. Aquela cena me lembrou quando tia Lenira trouxe Nico e eu para passearmos por ali. Mas aqueles eram outros tempos.

— Bença, tia.

— Deus abençoa, Catarina. — Ela sorriu — Cadê sua mãe e seu pai? Tá todo mundo bem?

A conversa trivial era uma forma de manter a paz na família. Acabei por me habituar a dar algumas respostas vazias antes de me afastar das minhas tias. Naquele dia eu não consegui fazer isso.

— Tá todo mundo bem, menos eu.

— Uai, mas cadiquê, Catarina?

— Eu tô muito triste com a senhora, tia. Num consigo fingir. Não dá.

Ela foi desfazendo o sorriso.

— Num vamo tocar nesse assunto de novo. 

— Não, também num quero conversar. Só quero que a senhora saiba que nunca vou esquecer o que tá fazendo comigo e com a Bel.

— O Geraldo, ele...

— Não fala o nome desse monstro! — A interrompi com voz enérgica. Era a primeira vez na vida que gritava com minha tia. Minhas mãos tremeram nessa hora — A gente tá viva e sofrendo, tia. O seu marido tá morto. E me dói que ele ainda seja mais importante que as suas sobrinhas. O que ele era é monstruoso, mas o que a senhora tá fazendo também é!

Não esperei pela resposta dela. Apenas me afastei, como há pouco tempo havia feito com minha mãe. Sentia que só precisava falar, apenas tirar tudo de dentro de mim.

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