Capítulo 9

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A manhã estava quente e o odor fétido do córrego impregnava todos os cômodos da casa. Me levantei bocejando e abri a janela. O céu da cidadezinha do interior mineiro estava azul, de um tom quase anil que coloria a cinzenta cor do nosso barraco.

Estava saindo para a cozinha, vestindo a enorme camisa que trazia os dizeres "Tião Nego, vote 5445". Parei ao lado da porta e fiquei nas pontas dos pés para olhar o estado lastimável do meu cabelo no espelhinho de borda laranja. Estava pendurado em um prego por um arame e ao lado dele havia uma folhinha de 1993 com o desenho de Jesus Cristo com a frase "O coração de Jesus abençoa este lar".

De repente, ouvi um barulho vindo do cômodo ao lado. Curiosa, fui ver o que estava acontecendo. Quando passei perto do banheiro, vi minha mãe agachada em frente ao vaso sanitário fazendo vômito. Fiquei espiando, assustada e com receio de chegar perto e tomar uma bronca. Logo ela se levantou, puxou a cordinha da descarga e foi para a varanda lavar o rosto no tanque.

Aquilo se tornou um mistério durante algum tempo. Os meses foram passando e minha mãe continuava a vomitar e engordar. Então, certa vez, a ouvi dizer à vizinha algo sobre outro filho, então resolvi perguntar se eu teria um irmão. 

— Vai, ué. — Minha mãe estava à beira do fogão, com as pernas formando um 4 e eu estava fazendo o dever da escola, sentada na porta de casa com o caderno sobre as pernas. 

— Deus tá fazendo ele na sua barriga? — Reparei bem nela. Como minha mãe era baixa, estava parecendo uma bolinha — Como que Deus faz os neném, mãe? 

— Fazendo, uai.

Deduzi por minha conta que Deus tinha uma fábrica no céu. Que pegava os adultos que morriam, recortava e modelava que nem massinha para fazer as crianças. Assim estaria explicado o tanto de gente que morria grande e depois o tanto de gente que nascia pequena.

— Pode pedir pra Deus fazer menina, mãe?

— Tá doida? Eu queria ter fio homem e veio ocê. — Ela não me olhou quando disse isso — Seu pai que rogou praga dizendo que ia ser muié.

 A encarei com raiva. Quando meu coração doía, eu não reagia com tristeza.

— Dá eu pra tia Lenira, então, se eu sou uma praga! Deixa eu ir morar com ela! 

— Já vai começar?

Baixei a voz para um sussurro.

— Queria que a tia fosse minha mãe e não a senhora.

Ela me olhou de volta, com uma expressão estranha, pensativa, depois voltou a cozinhar em silêncio. Quando eu estava terminando de fazer as continhas no caderno de "Para Casa", ela colocou um prato com um punhadinho de batata frita ao meu lado no chão. Era a última batata que tínhamos em casa. Minha mãe não disse nada, apenas saiu para o quarto, enxugando os olhos. 

A gravidez não estava sendo bem recebida. Mesmo querendo um filho homem, minha mãe sempre dizia que não desejava engravidar de novo, visto que mal tínhamos comida na mesa todos os dias. Ela tinha consciência das nossas condições, porém, era uma mulher de poucos conhecimentos e não sabia que antibióticos interferiam no efeito das pílulas anticoncepcionais.

— O médico do posto tinha que ter me avisado. — Ela falava isso dia e noite com meu pai.

— Eu sei, Leda, mas agora num tem que reclamar mais, o neném já tá na sua barriga. Agora nós tem que rezar.

— É tudo que eu faço desde que casei c'ocê. — Ela chorava, e eu acabava chorando junto com ela. Nada me desesperava mais do que ver minha mãe chorando.

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