Capítulo 3

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Tio Geraldo voltou pra dentro de casa com minha tia. Instantes depois, quando fomos chamados para almoçar, enchi os braços com algumas das melhores mangas que sobraram e corri para a varanda. Quando cheguei, encontrei boa parte da família reunida. Meu tio Beto, que tinha um bigode enorme de saçurana, estava em um banco baixo, conversando com o tio Geraldo, que dava altas risadas. Na luz da varanda, ele ficava ainda mais branco. Meu pai dizia que isso não era um bom sinal. Significava que não trabalhava muito no sol. Sempre pegava meu pai espiando as mãos de meu tio, tentando ver se ele ao menos possuía calos.

Minha mãe estava com os braços cruzados, meio sentada ou meio de pé no muro alto da varanda. Minha madrinha Sônia, surpreendentemente, estava equilibrando sua busanfa em um pobre banquinho de três pernas.

As duas conversavam animadas sobre o assunto preferido delas: Doenças, quem havia morrido com elas e os remédios caseiros que provavelmente as teriam curado.

Quando minha mãe me viu chegar, ficou louca da vida.

— Vai deixar nódia na roupa, Catarina! — Disse me trazendo uma bacia, onde me fez jogar as frutas.

— Truxe pro Nico, mãe! Ele num chupou nenhuma manga!

Nico, que estava chegando com uma pipa feita de sacola de mercado debaixo do braço e dois garotos mais velhos em seus calcanhares, olhou guloso para as frutas. Eram mangas coquinhas, suas preferidas, e estavam gordas, com apenas algumas listras amarelas na casca verde. É o melhor ponto de se comer, porque ainda estão firmes, porém, doces.

Percebi na hora que ele ficou agradecido, porque me abriu aquele sorriso largo de quando me via capturar o galho na partida de pique-bandeira. Ele era um garoto moreno e magrelo, com dentes miúdos e separados, além de simpáticas covinhas na bochecha.

— Uai! É pra mim? — Seus olhos escuros e enérgicos pararam nos meus — É por isso que eu gosto d'ocê Catarina!

— Hm... — Tio Beto soltou uma baforada de seu cigarro de palha. Mal dava para ver sua boca se mexendo debaixo daquela moita de pelos — Esses dois num sei não, hein, Leda! — Se virou para minha mãe, que devolveu uma expressão divertida e cúmplice — Vamos comer muito pé de frango daqui uns dia, né, não? Imagina só o Nico e a Catarina casando!

— Num é! Tô achando tamém!

— Cruz credo! — Disse Nico de repente, juntando as sobrancelhas. Ele estava sem camisa e o suor escorria de seus cabelos curtos, passando por sua testa larga e morena até o peito magro.

— Uai! — Exclamou meu tio — Quer casar com ela não? Óia que morena bonita, sô!

Nico me avaliou da cabeça aos pés e gritou:

— Essa vassoura de varrer terreiro?!

Algumas gargalhadas se anunciaram.

— Tá vendo, fia? Falei que cê tá precisando engordar! — Minha mãe se voltou para mim com ar de riso.

Madrinha Sônia falou algo com ela, mas não entendi o quê. Ambas davam risinhos enquanto me olhavam. Foi quando todos os demais adultos entraram no cerco.

— Tá uma franguinha meio miúda, mesmo!

— É farta de comer angu!

— Uma vareta em forma de gente!

— Esqueleto.

— Vara-pau.

— E o Nico?

— Ah, o Nico também não é lá essas coisa, não!

— É verdade!

— Óia a cara de cavalo desse moleque!

— Narigudo.

— E que zói feio.

— Cara de quem comeu bosta.

— Casalzinho desgraçado que vai ser esses dois.

Meu tio Beto tossia seco depois de cada risada. Tio Geraldo, por sua vez, atirava sorrisos tortos em minha direção. Minha madrinha e minha mãe continuavam a trocar comentários.

Vovó saiu rápido e gingando com um ar preocupado, talvez por alguma panela esquecida no fogo. Meu padrinho foi em seguida. Certamente, iria conversar com meu avô na sala, o único com quem ele gostava de estar naquela casa.

Nico, irritado com aquela zombaria toda, mas ciente de que não seria prudente xingar um adulto, se virou contra mim. Não estava a ponto de explodir como eu, apenas queria sair do foco das provocações.

— A Catarina é que tem cara de égua! Só farta relinchar!

— Se eu sou égua ocê é um cavalo! — Gritei, prontamente. — Vai tirar os carrapato do cu, seu estrupício!

— Óia! Não pode falar assim não! — Minha mãe agarrou meu braço com violência — Que boca suja é essa?

— Esse pangaré sarnento que começou!

E as risadas aumentaram.

— Que menina braba que ocê tem, Leda! — Uma tia baixa e magricela riu do outro lado — Se casar um dia, é capaz de bater no marido.

— E eu não sei? — Minha mãe afrouxou, vendo que ninguém a julgava por meu mau comportamento — Mas isso num vai casar, não! Quem vai querer moça braba e sem educação desse jeito? Tá precisando de umas chineladas na bunda, né, Catarina?

Me esquivei dela, peguei algumas mangas que havia depositado no balde, mirei e taquei com toda força na cabeça de Nico.

— Catarina! — Gritou minha mãe, agarrando meu braço enquanto Nico ria de mim por ter acertado a parede em vez da cabeça dele — Vai limpar agora!

— Limpa a senhora! — Gritei para ela, torci o braço com bastante força e corri para fora ainda a tempo de ouvir as risadas dos adultos chegarem ao fim.

Corri até chegar a um pé de carambolas e subi no primeiro galho, que ficava bem escondido entre as folhas. Lá cruzei os braços e fiquei falando sozinha, emburrada e com medo de voltar.

— Fio da puta! Desgraçado! — Repetia sem parar e as lágrimas rolavam desobedientes e vergonhosas por minhas bochechas.

Não havia um só dia em que estar em meio aos adultos, principalmente os da minha família, não me deixasse naquele mesmo estado. Minha mãe dizia que eu não era normal, que nenhuma criança levava as coisas assim tão a sério. Em outras horas dizia que era mal de família, que meu pai e os irmãos dele tinham o mesmo gênio ruim.

Não demorou muito para que minha mãe me encontrasse e, com o chinelo na mão, interrompesse meus xingamentos.

— Desce agora!

— Não. — Fiz bico e cruzei os braços.

— Desce.

— Sobe a senhora.

Pude ver sua veia assassina saltando na testa. Me arrependi imediatamente da minha boca grande.

— Desce ou eu conto pro seu pai quando ele chegar!

— Conta. — Balancei os ombros, como a menina endiabrada que era.

— Ah, então cê acha que eu tô brincando c'ocê, Catarina?

— Eu num vou descer! A senhora vai me bater! — E subi mais um galho acima.

— Se ocê descer agora eu num te bato! Se descer depois vai tomar uma coça.

Pensei por um instante, mordendo a boca até feri-la por dentro. Então desfiz a cara amarrada.

— Vai descer ou num vai?

— Eu desço. Mas não me bate. — Pulei do galho e coloquei as mãos na bunda para passar à frente dela. Minha mãe não me deu uma chinelada, mas segurou minha orelha e, enquanto a torcia, ia me empurrando para dentro de casa. Doía mais que o chinelo.

— Se ficar fazendo gracinha e me desrespeitar na frente dos outros de novo, eu não te trago mais aqui! E só não arranco seu couro porque não tamo em casa!

Bem Me QuerWhere stories live. Discover now