Capítulo 36

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Do meu esconderijo, me concentrei no barulho do toca fitas, tentando diferenciar o chiado do barulho da chuva. Leo aumentou o volume do aparelho e a voz de Nico ficou estrondosa na gravação.

"Hoje eu soltei pipa com o João e o primo dele lá na roça." Sua voz de garoto soava em um sussurro misterioso "Eles me falaram como que beijava na boca, mas acho que num entendi direito como que bota a língua. Eu testei na Catarina, mas num deu muito certo. Depois ela me deu cada soco. Ela ainda num concordou, mas tô namorando com ela."

Se não fosse o medo em meu ser, teria dado risada daquilo. O peso que sentia diminuiu um pouco após ouvi-lo. O segredo de Nico não era nada demais. Contavam apenas nossas travessuras.

Ouvi quando Leo apertou um botão do toca fitas. Ele avançou a gravação para uma parte mais no meio.

"Eu chorei ontem e meu pai ficou bravo." Dizia Nico, com voz séria "Ele falou que homem não chora. Meus primos ficaram rindo de mim, falando que eu era boiola. Eles me obrigaram a ir na casa da vizinha deles no outro dia. Isso é um segredo ainda mais secreto."

No exato momento em que a última palavra foi dita, a porta se abriu com força. Nico entrou correndo e empurrou Leo no chão, parando o toca fitas. 

— Sai! Todos dois! — Ele gritou.

— Não vou sair. — Leo rebateu — Esse quarto é meu também!

Os dois começaram a discutir e vi então um par de pés passar rapidamente à minha frente. Luquinha, o irmão mais novo, correu porta à fora e antes que Nico e Leo pudessem socar um ao outro, meu padrinho entrou no quarto aos berros. Foi logo separando os dois e mandando o filho mais novo sair.

— Que isso, Nico? — Meu padrinho encurralou o filho quando estavam sozinhos no quarto — Cê é o irmão mais véio. Não pode perder o controle assim.

— Mas o Leo mexeu nas minhas coisas!

— E vai bater nele por isso? Cê sabe que o Leo tem problema de coração. Quer matar o menino?

— Ele que me irrita o tempo todo. Cês nunca briga com ele. Por isso ele é assim!

Houve um silêncio momentâneo.

— Não me responde, Nico. — O homem falou com voz autoritária — Eu sou seu pai. Não esquece disso.

Não dava para ver o rosto dos dois, mas imaginei o constrangimento e o mal estar que Nico sentiu. Entendi que ele também passava por problemas em casa. Passava por coisas que eu nem tinha ideia. 

Em determinado momento, eles pararam de falar. O silêncio me desesperou. Fiquei parada debaixo da cama, em completo pânico. Só conseguia ver os pés do meu padrinho, andando na direção em que eu estava. Senti o lençol sendo erguido e me encolhi mais para debaixo da cama. Diferente dos filmes que assistia, não houve escapatória. Ele se abaixou e vi seu rosto de espanto ao se deparar com o meu.

Assim que levantou, sua voz furiosa soou:

— Cês dois pode me explicar isso?

Demorei um pouco a sair e encarar meu padrinho. A vergonha era maior do que tudo e o medo me fazia tremer. Menti, obviamente, falando que eu estava ali apenas para ver Nico. Não podia falar sobre as fotos que queria pegar.

— Fui eu que chamei ela, pai. — Nico tomou a frente — Eu que fiz errado.

Meu padrinho olhou para o filho e depois para mim. Esfregou o rosto, nervoso, e fez a pergunta que circulava em sua mente:

— E aconteceu alguma coisa entre ocês dois?

— Não, senhor. — Respondemos juntos.

— Eu não ia fazer isso, pai. — Nico completou — O senhor sabe.

Bem Me QuerWhere stories live. Discover now