Romance LXII ou do bêbedo descrente

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Vi o penitente
de corda ao pescoço.
A morte era o menos:
mais era o alvoroço.
Se morrer é triste,
por que tanta gente
vinha para a rua
com cara contente?
(Ai, Deus, homens, reis, rainhas...
Eu vi a forca - e voltei.
Os paus vermelhos que tinha!)
Batiam os sinos,
rufavam tambores,
havia uniformes,
cavalos com flores...
- Se era um criminoso,
por que tantos brados,
veludos e sedas
por todos os lados?
(Quando me respondereis?)
Parecia um santo,
de mãos amarradas,
no meio de cruzes,
bandeiras e espadas.
- Se aquela sentença
já se conhecia,
por que retardaram
a sua agonia?
(Não soube. Ninguém sabia.)
Traziam-lhe cestas
de doce e de vinho
para ganhar forças
naquele caminho.
- Se era condenado
e iam dar-lhe morte,
por que ainda queriam
que morresse forte?
(Ninguém sabia. Não sei.)
Não era uma festa.
Não era um enterro.
Não era verdade
e não era erro.
- Então por que se ouvem
salmo e ladainha,
se tudo é vontade
da nossa Rainha?
(Deus, homens, rainhas, reis..
Que grande desgraça a minha!
- Nunca vos entenderei!)

Romance da inconfidência (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora