Romance XVI ou da traição do Conde

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Já chega um próprio de longe:
já chega um próprio a cavalo,
por entre nuvens de poeira
e montanhas de cascalho,
e a negrada que se volve
de almocafres levantados
e a algazarra de protesto
dos grandes cães alarmados
sob o espanto dos tropeiros,
e a alegria dos vassalos
que esperam novas da Vila.
Chega e apeia-se de um salto.
A porta de João Fernandes,
pára, em demanda do Conde.
Sacode o chapéu e as botas,
conta mentiras de longe,
enquanto o cavalo bebe,
na água, as nuvens do horizonte.
Que novas serão chegadas?
Que novas traz aquele homem?
O Conde a andar pela sala,
com um fundo sulco na fronte.
Soam-lhe os passos nas tábuas
como passadas de bronze.
Mas, entre as doze mulatas
que a servem, resmunga a Chica:
“Oxalá não traga o próprio
más novidades da Vila.
Tenho o coração parado
como se não fosse viva.
Que este maroto, do Reino
ao Tejuco, não viria,
senão por algum segredo,
por alguma fina intriga.
Vamos a ver se minha alma
fala verdade ou mentira.”
Na sala passeia o Conde,
para trás e para diante.
- Por que me levais, amigo?
(Era a voz de João Fernandes.)
Dei-vos o ouro que quisestes;
ouro vos dei, mais diamantes,
para a Casa dos Meneses
de Castelo Branco e Abranches
não soçobrar arruinada
enquanto andáveis distante.
Como me levais agora
a prestar contas com os Grandes?
Fala o Conde de má morte:
- Ordens são, que hoje recebo...
Fala o Conde mui fingido:
- Padece por vós meu zelo:
de um lado, o dever de amigo,
mas, de outro, a lealdade ao Reino...
João Fernandes não responde:
ouve e recorda em silêncio
o que lhe dissera a Chica,
em tom de pressentimento.
Como as palavras se torcem,
conforme o interesse e o tempo!
(Como se fazem de honrados
os Condes, de bolsos cheios!)

Romance da inconfidência (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora