Romance XLVI ou do caixeiro Vicente

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A mim, o que mais me doera,


se eu fora o tal Tiradentes,


era sentir-me mordido


por esse em quem pôs os dentes.


Mal empregado trabalho,


na boca dos maldizentes!


Assim se forjam palavras,


assim se engendram culpados;


assim se traça o roteiro


de exilados e enforcados:


a língua a bater nos dentes...


Grandes medos mastigados...


O medo nos incisivos,


nos caninos, nos molares;


o medo a tremer nos queixos,


a descer aos calcanhares;


o medo a abalar a terra,


o medo a toldar os ares;


o medo a entregar amigos


à sanha dos potentados;


a fazer das testemunhas


algozes dos acusados;


a comprar ou ouvidores,


os escrivães e os soldados...


Vicente Vieira da Mota,


muitos são teus descendentes!


com o rico patrão salvo,


acusas o Tiradentes.
Mordem a carne do fraco


teus rijos, certeiros dentes!


Dentes de marfim talhado,


que tão bem feitos fazia,


dentes de víbora foram,


pela tua covardia.


Que poderosa peçonha


por dentro deles subia!


Entre os dentes o tomaste,


como animal carniceiro,


nome e fama lhe mordeste,


- tu, cúmplice e companheiro,


sabendo que não se salva


quem não dispõe de dinheiro!


E os dentes com que o ferias


eram, afinal, os dentes


que na boca te puseram


as suas mãos diligentes.


(Isso é o que a mim mais me doera


se eu fora o tal Tiradentes!)

Romance da inconfidência (Completo)Where stories live. Discover now