Romance LIV ou do enxoval interrompido

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Aqui esteve o noivo,
de agulha e dedal,
bordando o vestido
do seu enxoval.
Em maio, era em maio,
num maio fatal;
feneciam rosas
pelo seu quintal.
Por estrada e monte,
neblina total.
No perfil da lua,
um nimbo mortal.
(Mas quem lê na névoa
o amargo sinal?)
A noite na Vila
é densa e glacial.
O sono, embuçado
em cada beiral.
Quem não dorme, sonha
com seu enxoval.
A agulha, de prata,
e de ouro, o dedal.
Em haste de cera,
ergue o castiçal
para a turva noite
lírio de cristal.
“Sabeis, ó pastora,
daquele zagal
que andava num prado
sobrenatural?
Teria inimigo?
Teria rival?”
O sono conversa
em cada poial.
“Sabeis, ó pastora,
quem seja o chacal
que os passos arrasta
de Longe arraial?
Eu vi sua língua:
é um negro punhal.
Que mortes fareja
o imundo animal?”
De prata era a agulha,
e de ouro, o dedal.
Em sonho traçava,
com doce espiral
de brilhantes flores,
novo madrigal.
“Sabeis, ó pastora,
por que o maioral
manda pôr algemas
no louro zagal
que tranqüilo borda
lírico enxoval?”
Estrela de aurora,
fonte matinal,
já vistes e ouvistes
desventura igual?
A agulha partiu-se.
Quebrou-se o dedal.
Romperam-se as flores
- a que vendaval?
“Procurais os rastos
do infame chacal?
Sumiram-se embaixo
do trono real!”
Soluçam as águas
em seu manancial.
E em sedas que foram
de seda e coral,
vai rolando um triste
orvalho de sal.
“Sabeis, ó pastora,
daquele zagal,
que agora não borda
seu rico enxoval?”

Romance da inconfidência (Completo)Where stories live. Discover now