Romance XLVII ou dos seqüestros

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As ordens já são mandadas,
já se apressam os meirinhos.
Entram por salas e alcovas,
relatam roupas e livros:
tantas casacas de seda,
e tantos lençóis de linho;
tantos calções, tantas véstias
com bordados de ouro fino;
tantas fronhas de babados
e voltas de pescocinho...
Tantos volumes de Horácio,
de Júlio César, de Ovídio...
Compêndios e dicionários,
e tratados eruditos
sobre povos, sobre reinos,
sobre invenções e Concílios...
E as sugestões perigosas
de França e Estados Unidos,
Mably, Voltaire e outros tantos,
que são todos libertinos...
As ordens já são mandadas,
já se apressam os meirinhos.
Retiram das prateleiras
porcelana, prata, vidro;
puxam gavetas de mesas,
remexem nos escaninhos;
arregalam grandes olhos
sobre vastos manuscritos.
Não ficam lençóis nas camas,
tudo é visto e revolvido.
Nas caixas de mantimentos,
contam cada grão de milho;
arrolam bules sem asa,
sem asa, tampa nem bico!
Tantos mapas, tantos quadros
com seus vidros e caixilhos...
Tantas facas, tantos garfos,
tantas meias, tantos cintos...
As ordens já são mandadas...
já se apressam os meirinhos.
Pobres figuras odiosas,
curvadas a um vil serviço,
com suas penas rombudas
que estendem grossos rabiscos,
horas e horas dedicados
ao monótono exercício
de executar os seqüestros,
por duro dever de ofício.
Versos, idéias, estudos
são palavras sem sentido.
Pobres coisas desamadas
- lembranças, presentes, mimos...
O que foi gala e beleza
tomba no rol, sem prestígio...
Qual será maior desgraça:
a dos réus, com seu prejuízo,
ou a dos trastes sem dono
em morto papel perdidos?

Romance da inconfidência (Completo)Where stories live. Discover now