Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa

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“Que fugisse, que fugisse...
- bem lhe dissera o embuçado! -
que não tardava a ser preso,
que já estava condenado,
que, os papéis, queimasse-os todos...
Vede agora o resultado:
mais do que preso, está morto,
numa estante reclinado,
e com o pescoço metido
num nó de atilho encarnado.
- Isto é o que conta o vizinho
que ouviu falar o soldado.
Mas do corpo ninguém sabe:
anda escondido ou enterrado?
Dizem que o viram ferido,
ferido, e não sufocado:
de borco em poça de sangue,
por um punhal traspassado.
- Dizem que não foi atilho
nem punhal atravessado,
mas veneno que lhe deram,
na comida misturado.
E que chegaram doutores,
e deixaram declarado
que o morto não se matara,
mas que fora assassinado.
E que o Visconde dissera:
“Dai-me outro certificado,
que aquele ficou perdido
por um tinteiro entornado!”
E quem vai saber agora
o que se terá passado?
- Talvez o morto fosse outro,
em seu lugar colocado.
A sombra da noite escura
encobre muito pecado.
Talvez pelo subterrâneo
fosse ao Palácio levado...
Era homem de muitas luzes,
pelo povo respeitado;
Secretário do Governo,
que vivia em grande estado:
casa de trinta aposentos,
muito dinheiro emprestado,
e do velho João Fernandes,
dono do Serro, afilhado!
- Não creio que fosse morto
por um atilho encarnado,
nem por veneno trazido,
nem por punhal enterrado.
Nem creio que houvesse dito
o que lhe fora imputado.
Sempre há um malvado que escreva
o que dite outro malvado,
e por baixo ponha o nome
que se quer ver acusado...
Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo,
em fábula arrebatado,
como árcade ultramarino
em mil amores enleado.

Romance da inconfidência (Completo)Where stories live. Discover now