Capítulo XXXIII

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O apartamento de Alma parecia muito diferente do que era de costume. Desde que ela havia se mudado para aquele prédio, os cômodos eram enfeitados por telas, paletas de tintas, pincéis e telas finalizadas; depois da descoberta acerca do Parkinson, o apartamento deixou de apresentar todo aquele glamour artístico: um vazio passou a ocupar todo o espaço; agora os conjuntos de cerâmicas claras se encontravam repletos de caixas de papelão lacradas e empilhadas.

"Vamos logo, meu bem, são algumas horas de viagem e quero chegar antes de anoitecer." Alma disse enquanto segurava Hipólito em seu colo, uma sacola larga repleta de utensílios de cozinha recostada no assoalho. Leon passou por ela apressado, uma caixa larga em suas mãos.

"Então você está ansiosa por chegar no nosso novo casebre, é isso, meu amor?" Ele deu uma piscadela zombeteira, jogando uma bitoca para ela. Alma revirou os olhos, balançando a cabeça em negação.

"Por favor, Leon, você já sabe muitíssimo bem que eu sou bem controlada quanto aos meus sentimentos." Ela disse ao retirar a caixa de papelão das mãos dele e encurralá-lo contra a parede, baixando instantaneamente seu tom de voz. "Mas você também já sabe muitíssimo bem que com você as coisas me instigam muito mais." Ela cochichou dando beijos intermitentes em seus olhos e nariz. "Agora vá lá e busque Holly para irmos."

Alma caminhava em direção à porta decididamente quando se voltou para a sala mais uma vez. Ela então viu algo: uma cintilação vindo debaixo do sofá no centro do cômodo, causada pelo constante brilho do sol; uma luz forte, quase cegando-a. Alma agachou-se sem demora, enfiando o braço debaixo do móvel.

Ela reconheceu de imediato o objeto descoberto: o cabo de madeira, as cerdas já endurecidas cobertas de tinta verde. Isso a transportou para aquele dia; para a violência e a continuidade dos tremores; para os sentimentos de desespero e raiva; para a sensação de medo. Havia quanto tempo aquele pincel não estava ali, esquecido!

E então sua mente iniciou uma peregrinação pelas ocasiões mais diversas: o dia em que sentiu o primeiro tremor, mesmo dia em que esteve em frente a Álvaro; o dia em que o destino – ou ao menos era nisso que ela acreditava – a levou a cruzar o caminho de Leon;

Ao ver Leon se aproximar, Alma correu em sua direção, envolvendo-o entre seus braços.

"O que foi, meu amor?" Ele questionou ao segurar com ternura seus ombros.

"Não me pergunte nada, apenas me abrace por um segundo." Alma sussurrou baixo e sorriu ao recostar sua testa na dele. Leon não se contrapôs a manter-se calado. Ele apenas a abraçou.

"Precisamos ir, meu amor." Ele deu beijos na testa de Alma e se aproximou da porta já aberta, a cabeça acenando para ela.

"Só mais um segundo, pode ser? Tem algo que preciso fazer antes de sairmos." Ela deu uma piscadela ao respondê-lo.

"Tudo bem. Eu vou te esperar." Leon disse ao se direcionar ao corredor.

"Preciso finalizar um ciclo." Alma cochichou baixo ao se ver sozinha, os dedos passeando pelo corpo do pincel.

Caminhou até seu quarto. Lá, em um dos cantos de seu guarda-roupas, ela a encontrou: confeccionada em madeira simples, a caixa era cravejada de pequenas pérolas espaçadas entre si. Lá dentro uma infinidade de objetos já estranhos para Alma. Potes de tinta pela metade, um cavalete tripé diligentemente dobrado, espátulas moldadas em lâminas de aço, paletas manchadas em um arco-íris de cores e pincéis achatados, planos e redondos – eles abarrotavam a caixa.

Alma não pôde conter um sorriso – trêmulo e elevado, tempestuoso e lastimado. Encaixou o pincel com um cuidado extremo em um dos raros espaços dentro da caixa. Seu coração devia estar batendo umas duzentas vezes por minuto, ela sentia – aquilo tudo lhe parecia um rito de passagem, um daqueles vividos por tribos longínquas. Ao menos era assim que ela se sentia.

Agora Alma podia trancar a chave a caixa. Aferroou-a com um desvelo cadenciado, quase ritmado.

O chevrolet a aguardava, o motor cantando baixinho, Leon com as mãos no volante e um sorriso exultante e aventureiro no rosto.

"Estamos prontos?" Perguntou para Alma com um beijo no ombro.

"Estamos." Ela respondeu prontamente.

A verdade é que aquele sorriso que se abriu em seu rosto já seria uma resposta suficientemente certeira. Estava preparada para ir atrás de algo novo, para ir atrás de novidades frescas.

Olhou para trás. Lá estava Hipólito, em sua gaiola, ronronando baixinho e encarando a dona com seu olhar sonolento. Na gaiola ao lado estava Holly, como uma pequena bolinha de pelos.

Alma não se demorou em escancarar o vidro da janela ao lado. O vento soprava em seu rosto e seu colo, refrescando sua pele. Ela cerrou os olhos, a fim de sentir cada sensação com o auxílio de cada fibra de seu corpo.

Havia tanto tempo desde a última vez em que viajara de carro! E havia sido com a companhia de Ananda. A amiga a convencera a se aventurar, como era de praxe. E ela era capaz de recordar com precisão cada instante da viagem.

Agora cá estava ela, recordando da risada de sua amiga. Era uma risada que esbanjava em cada nota emitida um sentimento pleno e verdadeiro de liberdade. De uma liberdade ilimitada. Ela se lembrava com tamanha fidelidade da risada de Ananda que era como se ela pudesse ouvi-la ali, naquele instante, dentro do carro com os dois.

Pela primeira vez Alma sentiu uma paz imensa ao se lembrar de sua amiga. Virou-se para Leon. Ele dirigia concentrado. Repousou uma de suas mãos no joelho dele, arrancando assim um sorriso largo do homem ao seu lado. Deus, como ela estava feliz! E finalmente poderia bradar isso aos quatro cantos do mundo: sim, ela estava feliz! Feliz! Permitiu que o vento banhasse as pontas de seus dedos, que cada célula de sua mão experienciasse aquilo.

Agora tudo seria diferente para Alma.

Pegou seu CD do Sufjan Steves. Já estava repousado sobre o painel do carro. Não o tocava havia meses. Selecionou a faixa Mystery of love, sua favorita. Agora ela estava pronta.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now