Capítulo XVI

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No dia seguinte, Alma retornou à Empório do Papel – desta vez sob o pretexto de falar com Marina, a vendedora. Lembrou-se que era o dia de folga de Leon, ele contara a ela alguma vez. Após muito charme, muito choramingo e biquinhos, Marina por fim cedeu o endereço de Leon à pintora. Esperava que aquilo não representasse qualquer problema à moça, Alma pensou ao sair vitoriosa da loja.

Após dirigir por alguns demorados minutos, Alma finalmente chegou ao prédio indicado no papel amarrotado que recebera de Marina. Era um espaço em muito modesto, mas que de imediato transmitia um conforto em suas afuniladas pilastras. Ao bater à porta do apartamento indicado pela vendedora – o de número 105, Leon abriu a porta sem demora, vestindo uma bermuda larga e despojada, e sem qualquer camisa. Alma logo desviou os olhos, buscando esconder seu repentino constrangimento.

"Alma?? Mas como você sabe onde moro?" Ele indagou ao esticar uma mão para apanhar em algum lugar uma camisa regata, vestindo-a prontamente.

"Digamos que fiz uso de uma pequena chantagem emocional com sua colega Marina... E ela acabou cedendo aos meus charmes e me entregando o seu endereço... Tem problema?" Alma tinha o corpo contraído, temendo que ele se ofendesse com toda aquela conjuntura.

"Não, Alma, de modo algum. Por favor, entre!" Ele acenou para que ela adentrasse sua pequena sala, um sorriso de súbito delineando-se em seus lábios.

O ambiente era diminuto, Alma notou, porém em muito aconchegante; alguns papéis se encontravam segurados por um pequeno peso desbotado em cima de uma mesa de centro; um ventilador de teto fazia um constante barulho - que se misturava a uma música ao fundo - e refrescava todo o recinto. Aquela tarde estava de fato tépida, Alma ponderou. Em um dos cantos da sala estava repousada uma gaiola, e dentro uma chinchila bege comia sementes de girassol. Alma se aproximou, sussurrando fofurinhas ao animal.

"Esta é Holly Golightly. Apenas Holly para os mais íntimos."

Alma olhou para Leon, mordendo o lábio inferior e abafando uma risada.

"Bonequinha de Luxo?"

Leon riu e deu de ombros, sentando-se em um dos braços desgastados de seu sofá.

"Um verdadeiro fã faz o que deve."

Alma encaixou com facilidade um de seus indicadores por entre as grades da gaiola, acariciando os pelos do animal.

"Olá, Holly. Você é a chinchila mais linda que vi em toda minha vida – posso chamá-la só de Holly, não é?" Ela se virou para Leon. Ele a encarou por um par de segundos, e então sorriu.

"É claro que pode, Alma."

"Uma oferta de paz, e um pedido de desculpas." Alma esticou a mão, deixando à vista de Leon uma barra de chocolate de tamanho médio. "Confesso que queria ter trazido uma grande, mas precisei de outra destas barras para chantagear Marina." Ela riu ao se sentar no sofá após um convite de Leon. Ele pegou o chocolate, balançando a cabeça efusivamente em um sinal jocoso de reprovação e permitindo que uma risada grave escapasse por entre seus lábios.

"Posso saber o motivo dessa oferta de paz, Alma?"

"Ora, Leon, você sabe... Não gostei nem um pouquinho da forma como Álvaro te tratou ontem à tarde, na papelaria... Mas assim que saímos da loja eu chamei a atenção dele, e acho que no fundo ele só sentiu um ciúme momentâneo de você, por algum motivo... E pode não parecer agora, mas garanto que ele é um cara legal."

Leon suspirou fundo e fechou os olhos, fixando-os em Alma após um tempo.

"O homem que estava contigo na papelaria? Ah, Alma, me desculpe, mas duvido muito que ele seja um cara legal... Quero dizer, caras verdadeiramente legais não fazem aquele tipo de coisa, fazem? Além do mais, sei que não é meu direito interferir, mas preciso dizer... Eu realmente acredito que você é capaz de encontrar alguém muito melhor que ele... Melhor para você."

Alma franziu o cenho de imediato, cruzando seus braços.

"Melhor para mim em que sentido, Leon?"

Leon suspirou fundo mais uma vez, desta vez inclinando o corpo em direção a Alma.

"Alma, sei que algo não está muito certo... Aquele dia, no hospital, você recebeu uma notícia chata, sei disso. Você não precisa me contar exatamente o que a sua irmã te disse, mas sei o que sei. E de alguma forma não acredito que esse Álvaro seja alguém com quem se possa contar em um momento complicado. Não sei, é mais um sentimento que tenho."

Alma bufou baixo ao ouvir aquilo, arqueando uma de suas sobrancelhas e fixando seus olhos verdes em Leon.

"Você nem o conhece, Leon. Além do mais, estar com Álvaro ou com qualquer outra pessoa é uma decisão que cabe a mim e somente a mim."

"Só estou dizendo que acredito que você poderia estar com alguém melhor, Alma... Não estou dizendo o que deve ou não fazer..."

Alma o olhava, uma descrença expressa em seu rosto.

"Mas por que esse súbito interesse em meus relacionamentos, Leon?"

"Não é um interesse em seus relacionamentos, é... É um interesse em seu bem-estar, Alma. Álvaro só não me parece alguém com quem se possa contar..."

"Está bem, Leon, O Clarividente. Você está tirando isso de lugar nenhum. Isso não faz o menor sentido. Esta conversa não faz o menor sentido." Alma ergueu-se de seu assento, dirigindo-se à porta sem hesitar por um instante.

"Aonde você está indo, Alma?"

"Embora, Leon. Talvez eu esteja cansada de ter pessoas dando palpites acerca de cada decisão que tomo. Estou com Álvaro, e estou feliz. Isso é tudo."

Leon recostou a cabeça no encosto do sofá, um suspiro prolongado e profundo escapando de seus pulmões. Alma saiu pela porta após um adeus entrecortado, seco.

Jogou-se no sofá de sua casa após tomar os remédios da noite. Não era capaz de decifrar o que sentia em relação a Leon naquele momento. Sentia talvez raiva, mas uma raiva por mais uma vez não estar bem com ele, e não exatamente pelas palavras que havia dito a ela. A jovem sentiu algumas poucas lágrimas brotarem em seus olhos, mas as engoliu sem precisar de muito esforço. Talvez já estivesse ficando calejada.

Levou um susto ao ouvir seu celular tocar. Era Manoel Ferraz quem ligava. Droga, haviam passado dois dias sem que ela pintasse uma linha sequer, e o prazo começava a se estreitar.

"Alô?"

"Alô, senhorita Moretti? Como está indo minha pintura? Será que está conseguindo avançar, será capaz de cumprir o prazo?"

"Olá, senhor Ferraz. Bem... Estou um pouquinho atrasada em relação ao que esperava, mas nada que não seja facilmente resolvível."

"Bem, senhorita Moretti, serei direto e sucinto. Sei o que aconteceu a você. Sei da doença recentemente descoberta pela senhorita. Estou errado em minhas informações?"

Alma engoliu a seco para tentar respondê-lo, e ainda assim sua voz saiu falhada por sua boca.

"Não, não está."

"Alma, espero que entenda que é delicado para mim, comprometer-me com uma profissional que acabou de descobrir uma doença que pode afetá-la nessa área de sua vida. E se você não conseguir cumprir o prazo? Preciso ter certezas, Alma, e não me sinto certo em fazer negócios com você, não agora que sei que sofre de Mal de Parkinson."

Alma engoliu a seco mais uma vez. Sentiu como se pequenas facas cortassem seu coração. Ela acabara de perder sua maior chance de alavancar profissionalmente. Acabara de perder mil reais, os quais a ajudariam a pagar suas muitas contas atrasadas.

"Vou pagar o preço equivalente às compras da tela e dos demais instrumentos de pintura. Posso comprometer-me apenas com isso. Envie para minha secretária, por telefone, os valores. O dinheiro será enviado a você assim que possível. Sinto muito, senhorita Moretti. Espero que compreenda minha situação."

Alma mais uma vez manteve-se em silêncio absoluto. Manoel Ferraz por fim desligou o telefone, e ao ouvir o som do beep do outro lado da linha, Alma era capaz de pensar em um nome apenas.

Álvaro.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now