Capítulo I

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Os raios de sol da manhã já encontravam seu caminho através de sua persiana semicerrada e evidenciavam as minúsculas partículas de poeira que dançavam pelo ar de seu quarto, trazendo uma atmosfera etérea para aquele início de dia. Alma encheu seus pulmões do ar matinal que a circundava, abrindo lentamente seus olhos. Como ela amava o cheiro das manhãs! Esticou a mão cegamente, apalpando a cômoda ao lado de sua cama à procura de seu celular. Havia uma mensagem de seu cliente. Havia muito a ser desenrolado naquela quinta-feira ensolarada.

Sentou-se na beirada de sua cama e rapidamente tratou de retirar as meias que calçava. Queria sentir o frescor do piso sob seus pés. Pôs então sua mente para pensar: cavalete, tela, tintas a óleo, palheta, pincéis. Ok. Espátula, óleo de linhaça e godê também. Tudo estava certo. Ou melhor, quase tudo. Faltava-lhe ainda inspiração. Ela só tinha duas semanas à sua disposição. Como pode o tempo matar tão cruelmente todo o espírito da arte, ela pensou consigo.

Desde sua mais tenra idade Alma Moretti era dona de uma natureza calorosa e indômita. Sempre tão dona de suas convicções e anseios, ela sempre fora em muito diferente de sua irmã. Era cinco anos mais jovem que Amália. Amália Moretti era o maior orgulho de toda a família. Tendo entrado no curso de Medicina aos 17, formou-se aos 23 e tornou-se uma neurologista aos 25, sendo hoje uma das mais importantes especialistas em sua área no Hospital São José Moscati.

Alma, no entanto, nunca se viu seduzida pela vida acadêmica elegida por sua irmã. Nunca quis se amoldar a qualquer caixeta de limitações e impedimentos. Pintar a fazia sentir-se plena. E havia alguém para quem Alma era o verdadeiro orgulho. O velho senhor Benjamin amava ambas as suas filhas com igual intensidade. Mas ver sua caçula com pincel e palheta em mãos sempre fazia seu coração se iluminar em um instante.

A textura de seu casaco de linho roçava sua pele e sua mente se encontrava distraída quando Alma se sobressaltou com um som vindo da porta de madeira. Amália entrou, uma grande caixa de papelão sendo equilibrada contra seu corpo.

"Estava indo para o HSJM quando decidi dar um pulo aqui. Não vou me demorar, só quis trazer esse presentinho para você. É um suporte para temperos. Cabem até 16 condimentos, veja só. Agora poderá aprender novas receitas e servir grandes almoços, não acha?" Ela disse ininterruptamente ao depositar a caixeta no balcão que separava a ampla e clara sala da irmã de uma diminuta cozinha. Alma a escutava em silêncio, os olhos fitando o chão e os braços cruzados contra o corpo magro. Amália, percebendo por fim a irmã, pediu desculpas ocultas em um largo sorriso, esticando os braços e abraçando-a com ternura.

A tela, apoiada em um cavalete, encontrava-se escorada em uma das arestas da sala, um risco de tinta verde despretensiosamente traçado em seu meio. Amália, ao fixar seus olhos no objeto esvaziado, decidiu sentar-se no braço de uma das poltronas, a testa franzida.

"Mais uma encomenda?" Ela tentou puxar assunto.

"Sim. Álvaro Garcia, um advogado que possui uma firma no Empire Building, quer decorar seu escritório com uma pintura inovadora. Não quer qualquer releitura ou coisa do tipo. Ainda preciso encontrar minha inspiração." Alma sentou-se na outra extremidade do sofá, cedendo à investida da irmã. Passeava com os delgados dedos por toda a superfície de sua curta franja.

"Você vai encontrar, Alma. Você sempre encontra." Amália sorriu para a irmã com um denso ar de entendimento, e por uns instantes ouvia-se apenas o silêncio, ambas se encarando com um singelo sorriso no lábios. Momentos como aquele eram raros. E tal raridade era apenas mais uma das muitas consequências de ter uma personalidade tão diferente da de sua irmã mais velha.

"Preciso ir." Disse Amália, desviando os olhos de Alma como quem repentinamente fosse acordada. "Tenho um paciente marcado para ser atendido às 10. Ele está passando por uma reabilitação. Sofreu um acidente cerebrovascular." Ela se levantou de seu assento, ajeitou a blusa social que vestia e pegou a chave de seu carro. "Agora falo sério, Alma. Marque um jantar. Chame o papai. Há muito não nos reunimos os três."

"Pensarei no assunto." Alma respondeu, recruzando os braços.

Não gostava muito da ideia de se sentar à mesa com seu pai e sua irmã. As maiores discussões que tivera com Amália no passado tinham se desenrolado em situações como aquela. Mas naquele momento, ao fixar os olhos no semblante da irmã, ela viu exatamente o que se passava em sua mente: no fim das contas aquele encontro jamais aconteceria. Afinal, conhecia Alma.

"Sábado, daqui a duas semanas, às oito da noite. Vou preparar um prato indiano. Leva bastante tempero." Ela se convenceu a dizer, mesmo sabendo que se arrependeria na hora H, ou talvez até mesmo antes. Amália logo abriu um sorriso.

"Obrigada."

"Ok, agora você precisa ir. Logo seu paciente vai chegar ao hospital e eu preciso começar a pintar." Ela imediatamente começou a empurrar a irmã em direção à porta. Amália riu, divertindo-se com a já conhecida reação de Alma a momentos como aquele.

"Estou indo, estou indo. Mas não se esqueça de no Sábado ter o tempo todo ao seu lado um livro de receitas. Por favor, não quero ter que pedir uma pizza."

Alma respondeu revirando os olhos. Estava sozinha de novo. Precisava voltar sua atenção para a tela que conversava com ela a todo momento do canto de sua sala. Mas antes de qualquer coisa ela precisava calçar novamente seu par de meias cinzas. Não sabia o porquê, mas sem as meias ela nunca conseguia começar um trabalho. Também precisaria de uma bebida quente. Olhou o relógio. Eram 10 horas. Teria que almoçar às 11, mas nunca era tarde para um bom cappuccino.

Pegou seu CD do Sufjan Steves. Já estava aberto em cima de seu pequeno som portátil. Havia sido tocado ontem, e anteontem também. Selecionou a faixa Mystery of love, sua favorita. Agora ela estava pronta.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now