Capítulo X

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Alma há muito não acordava tão empolgada para mais um dia – apesar de, por algum motivo desconhecido, não ter conseguido descansar muito bem aquela noite. Uma semana havia passado desde o dia em que havia saído com Álvaro. Encaminhou-se logo à sua sala, abrindo suas cortinas de poliéster e permitindo que a claridade forte do dia iluminasse todo o lugar. Prendeu o cabelo em um coque bem apertado, ajustou suas meias cinzas nos pés e pegou todo o material que tinha à sua disposição.

Na tarde anterior ela havia telefonado para a papelaria Empório do Papel. Encomendou com eles algumas bisnagas de tintas, pincéis novos e um solvente de óleo de linhaça. Tratou logo de pedir que enviassem tudo por Leon. Ela queria rever o vendedor, acabou enfim confessando a si mesma.

Ainda não havia decidido qual seria a sua nova pintura. Resolveu, por fim, que deixaria sua imaginação trabalhar. Não se planejaria muito. Isso poderia acabar resultando em sua melhor obra, ela pensou, animando a si mesma.

Os traços nasciam de modo orgânico, cada linha contando sua própria história, quando repentinamente Alma sentiu algo percorrer seu corpo magro – algo que já lhe era familiar. Mas não era uma trepidação como as que sentira antes. Dessa vez sentiu algo mais vigoroso, mais violento e assustador.

O pincel e o pote de tinta verde que seus dedos seguravam encontraram o chão quente, e um universo à parte, feito de formas desconexas riscadas pela tinta esverdeada, formou-se por todo o assoalho.

Alma quase podia ouvir seu coração palpitando com fúria em seu peito. Percebeu seu cenho se franzindo involuntariamente e seus olhos marejando. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo a ela, e isso era o que mais lhe assustava. Tentou o que já havia funcionado antes: segurou uma mão com a outra, pressionando-a enquanto o corpo fragilizado se recostava na parede branca e gelada e as lágrimas aqueciam seu rosto.

Os tremores persistiam, mesmo com suas investidas para interrompê-los. Alma então se desesperou – o obscuro sempre nos causa mais temor que aquilo que se sabe, por mais que o conhecido possa se tratar de algo verdadeiramente temoroso. Respirou fundo, no entanto. Precisava se acalmar. Abaixou-se e pegou com grande esforço seu pincel. Mergulhou-o na tinta branca e tentou fazer algo – qualquer coisa, ela não se importava. Mas não mais conseguia traçar qualquer risco, coerente ou não.

Mil pensamentos borbulhavam em sua cabeça, e nenhum ao mesmo tempo. Agarrou seus potes de tinta, pinceis e paletas, pressionando-os contra o corpo, e correu em direção ao seu banheiro, onde a banheira se encontrava preenchida. Em um acesso de raiva, Alma arremessou seus instrumentos de trabalho contra a água, deixando seu corpo cair no chão.

Olhou absorta para seus utensílios. As tintas líquidas caminhavam desnorteadas e mesclavam-se umas às outras, causando um efeito bonito na água antes límpida. Sua mente voltou ao dia em que por fim decidiu o que pintaria para Álvaro; ao sabonete se dissolvendo e se movimentando livremente pela água. E então seus olhos se arregalaram como nunca. Ela sabia o que acontecia a ela?

Um clique vindo da sala chamou sua atenção.

"Alma? Trouxe a entrega." Ela ouviu uma voz conhecida, e tampou com toda força sua boca, apertando suas pálpebras e tentando não fazer qualquer barulho. Passos cuidadosos ressoavam pelo corredor quando ela ouviu a voz ir de encontro às paredes do banheiro.

"Alma? Meu Deus, está tudo bem contigo? Alma, o que é que está acontecendo? Fale comigo, por favor!" A voz foi gradativamente se afastando dos sentidos de Alma.

Ao acordar, demorou um punhado de segundos para se situar. Estava em sua cama, Leon sentado à sua frente com um sorriso largo no rosto e um pote saboroso de Yakissoba em sua mão.

"Você apagou, Alma. Fiquei assustado, mas consegui te carregar até aqui. Fiz esse pedido, imaginei que pudesse acordar com fome. Quer?" Ele esticou a mão que segurava o pote de comida. Alma hesitou por um momento, mas de fato estava com fome. O que poderia fazer?

O Yakissoba estava quente e delicioso em sabor e consistência. Ela devorou sem nada dizer. E Leon respeitou seu silêncio.

"Só quero que você se lembre que pode contar comigo, Alma."

Ele não fez qualquer pergunta. Não a pressionou com o olhar, mas a fitou com compreensão, acarinhou sua alma com os olhos. E nada mais. E talvez tenha sido precisamente isso o que a levou a falar.

"Estou com medo de estar com uma doença. Uma doença que me impossibilitará prosseguir vivendo minha vida assim, como vivo. Estou assustada, Leon. Muito assustada."

Leon engoliu a seco, passando os dedos por seu queixo, a expressão pensativa.

"O que eu posso fazer para te ajudar? Por favor, me diga, Alma. Posso te levar a um hospital?" Ele visivelmente buscava esconder seu receio, mostrar-se forte.

"Mas você precisa retornar à papelaria."

Ela naturalmente, sob quaisquer outras circunstâncias, haveria recusado aquela oferta com toda sua força – tinha aversão a hospitais mais do que tinha a qualquer outra coisa. Mas não poderia naquele dia.

"Eles vão entender quando eu contar o motivo." Ele disse ao dar um sorriso acalentado, acenando com a cabeça para eles irem. "Vou te levar ao HSJM."

Alma, que já se erguia de sua cama, freou qualquer movimento.

"Não."

"Vamos lá, Alma, é o melhor hospital da cidade, e são só uns quinze minutos até lá. Qual é o problema?"

Ela não queria contar a ele qual era o real problema.

"O meu plano de saúde... bem, é que o HSJM não atende por ele." Ela se recostou em seu travesseiro, cruzando seus braços, como quem declarasse um impasse. Leon abaixou os olhos e sacudiu a cabeça, uma risada discreta saindo de seu peito. Então ele apontou para a cômoda ao lado da cama da pintora, onde se encontrava o cartão, dentre muitos papéis, com o nome do plano de saúde estampado em azul.

"Olha, Alma, eu conheço esse plano de saúde. É o mesmo da minha irmã Leonora, e ela sempre vai ao Hospital São José Moscati se consultar."

Alma não permitiu que um atestado de culpa se manifestasse em seu rosto. Tratou de se levantar rapidamente, apanhando seu cartão em sua cômoda e calçando qualquer par de sapatos, acenando com a cabeça para que eles fossem.

A viagem em direção ao hospital foi torturante. Ela ansiava por chegar lá e obter por fim uma resposta, mas ao mesmo tempo queria poder retardar o recebimento de qualquer notícia. O ambiente do HSJM lhe pareceu insípido e apático. Brancos em excesso, os corredores traziam um movimento descomedido de médicos, enfermeiros e pacientes. A moça que se sentava atrás do balcão da recepção, um par de óculos repousados sobre o nariz, sorriu largo assim que viu Alma se aproximando.

"Olá, senhorita Moretti, está tudo bem?" perguntou a secretária Luana Oliveira, já há um tempo conhecida de Alma. "Quer que eu chame sua irmã, ou precisa marcar uma consulta?"

Alma sentiu o olhar de Leon se direcionar a ela no instante em que Luana proferiu a palavra 'irmã'. Ela não voltou seus olhos para ele. Não queria parecer estar assumindo um Mea-culpa. Engoliu em seco e se forçou a dizer as palavras que há poucos instantes havia ensaiado mentalmente, cada uma delas saindo com uma sensação amarga de sua boca.

"Preciso de uma consulta urgente, Luana. Com minha irmã. É inadiável."

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now