Capítulo XII

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Alma decidiu que não voltaria ao seu apartamento. Chegou ao casebre de seu pai e a noite já começava a cair. Sua empreitada pelo HSJM havia durado muitas e exaustivas horas. Ela só queria se recostar na poltrona velha de seu pai, tomar mais um chá quente e ouvir Benjamin recitar as poesias de seus livros empoeirados. Aquilo seria, naquele momento, um prefeito Paraíso para Alma.
O chá seria de camomila aquela noite - quanta conveniência! Benjamin entregou para Alma cobrir as pernas uma pequena colcha de retalhos. O vento sibilava forte por entre as frestas das janelas. Um bolo de fubá recém saído do forno ornava a mesa, e Alma observava sua xícara repleta de chá fumegante, a mente exausta em qualquer lugar longe dali.
"Se houvéssemos ensaiado sua chegada, minha filha, não haveria sido tão precisa. Eu já me conformava com a ideia de comer esse bolo sozinho, recebendo apenas uma ajudinha de Markus." Ele riu ao afagar as orelhas pretas do cachorro. Senhor, será que ela seria capaz de contar o que havia descoberto algum tempo atrás? Como ela poderia fazer isso ao seu pai? Como ela poderia destruir pedra por pedra o abrigo que ele havia construído para si - um abrigo de qualquer dor - após a morte de sua esposa?
"Papai, posso perguntar algo ao senhor?" Ela tomou um pequeno gole de chá antes de prosseguir. "Como era a mamãe? Quero dizer, antes da doença. Tenho algumas memórias espaçadas dela, mas nada que me dê de fato uma certeza a respeito de sua figura."
Benjamin se sentou com certa dificuldade em um tamborete e soltou um prolongado suspiro. Era o que sempre fazia antes de contar qualquer coisa a respeito da vida de Isabela Moretti.
"Está certa em não confiar em suas memórias tão cegamente, minha filha. Memórias não são sólidas, são instáveis, principalmente as de uma criança. Sua mãe era um espírito livre - creio que essas palavras façam jus a ela. Em muito você se assemelha a ela. Gostava de ir à praia ao por do sol, caminhar pela orla e catar as conchas brancas que encontrasse pelo caminho... Gostava de se sentar à beira do Lago Viveiros para molhar os pés e sentir o vento do fim da tarde lhe bagunçar os cabelos... Ah, e como ela gostava de colocar nosso aparelho de música portátil no máximo e cantar alto ao som de Don't You Forget About Me - os nossos vizinhos sempre reclamavam." Ele riu ao se lembrar do fato.
"Mas assim como sua mãe era um espírito livre, ela também vivia com um peso sobre seus ombros. Seu senso de responsabilidade era às vezes sufocante - e nesse aspecto ouso dizer que Amália tenha uma semelhança com a mãe que beira o preocupante. Tudo aquilo com que Isabela se comprometia, ela honrava, sem medir as consequências. Você e Amália sempre foram sua maior responsabilidade - e a mais válida, e a melhor. Vocês eram sua vulnerabilidade. Então imagine - e creio até que possa se lembrar disso - como sua mãe ficou quando a doença a debilitou. Ela mudou, Alma, como a água transformada em vinho. Eu não tinha mais minha Isabela ao meu lado, transbordando vida em cada ação. Eu tinha apenas um fantasma, um espectro que me amedrontava..." Benjamin pausou sua fala por um instante e olhou para Markus, que havia repousado a cabeça em sua perna.
"Você sabe que sua mãe acabou cedendo à doença, mas teve algo que nunca, nunca lhe faltou."
"E o que seria esse algo?" Alma perguntou, o queixo repousado sobre as mãos.
"Amor. Ela sempre esteve cercada daqueles que mais a amavam. E isso, minha filha, ah, acredite em mim, isso nos ajuda a enfrentar qualquer coisa que a vida jogue em nossos caminhos. Jamais se esqueça disso." Ele abriu um sorriso ao apertar a ponta do nariz de Alma, como sempre fazia quando a filha era apenas uma criança.
"E olhe só, conversamos por tanto tempo que o chá esfriou! O que eu ensinei a você sobre isso, minha filha?"
"Chá requentado não presta." Ela pronunciou cada palavra como se dissesse um ditado.
"Nossa bebida quente já era." Ele sussurrou em pleno som de desalento, erguendo-se de seu assento a fim de guardar o que restara do bolo de fubá.
"Papai, por acaso o senhor tem chocolate em pó guardado nessas prateleiras?"
"Tenho sim, minha filha. Posso saber o motivo dessa pergunta?"
"Hoje a bebida quente fica por minha conta." Alma prontamente se ergueu do tamborete para pegar o pacote de amido de milho que se encontrava aberto em cima do balcão. E como ficou bom o chocolate quente que ela preparou!
Alma e o pai encaminharam-se para a sala, onde Benjamin escolheu um livro dentre muitos em sua prateleira. Ela não contaria ao seu pai sobre sua doença. Não naquela noite. Dos poemas lidos por seu pai, um em especial, de um poeta chamado Diego Evair, ressoou nos pensamentos de Alma por muito tempo após aquele dia.

Se a vida te aflige...
Faz dela um poema...

Faz dela um soneto,
Sem um pingo de desencanto.

E que de encantos,
Encante-se o verbo ao mundo.

Se a vida te aflige...
Torna-te um poeta...

Faz dela um belo poema...
E do mundo - a tua inspiração.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now