Capítulo XXVI

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Alma não gostava de si mesma vestindo preto - mas naquela tarde tépida de uma segunda-feira não havia muitas escolhas para ela. Prendeu os cabelos negros, como era seu costume, com um prendedor branco. Afinal, não queria ir por completo vestida de preto. Ananda não aprovaria. Sentou-se em um banco estofado para calçar o par de tênis, também branco. Um tremor insistente tomou seus dedos. Seria por conta da doença ou da inquietação que invadia seus sentidos? Logo sentiu as mãos firmes de Leon acariciando seus pés. Calçou nela o par de tênis, amarrou sem demora os cadarços finos e então passeou com os dedos calorosos pela bochecha quente de Alma.

"Você consegue, Alma. A gente vai lá, e você vai se despedir de sua amiga... É muito importante que se despeça, você sabe bem disso, não é?" Ele segurou com uma força amável as mãos de Alma, buscando em algum lugar dentro de si um sorriso reconfortante. Ela, por sua vez, balançou prolongadamente a cabeça sem pronunciar qualquer palavra. Talvez ela sobrevivesse àquilo.

Alma não percebeu muito durante o arrastado caminho de ida. Observou os primeiros detalhes a despontarem no horizonte até adormecer no banco do passageiro, a cabeça recostada no vidro da janela e Leon acariciando seu joelho a cada parada em qualquer sinaleiro ou em uma faixa de pedestres.

Após alguns vagarosos minutos chegaram ao Cemitério Morada dos Anjos. A cada passo encolhido em direção ao local onde ocorreria o velório, Alma sentia seu coração acelerar mais e mais, uma aflição tomando o ar a cada exalação de seus pulmões. O dia estava escaldante, o sol luzia intenso – e Alma só conseguia imaginar como Ananda apreciaria aquele clima cálido.

Ao entrar em uma capela espaçosa e arejada, Alma logo apontou ao longe S Conrado e D Isadora. Ela fazia uso de um par de óculos bastante escuros, mas era impossível não notar uma gritante vermelhidão em seu nariz afilado, as mãos esguias, amarguradas e apáticas, esfregando-se uma na outra. Ele, por sua vez, as entradas em seus cabelos foscos bem lustrosas, transbordava ares de serenidade, uma mão resguardada no bolso de sua calça de linho e a outra sobre o ombro murcho de sua esposa. Mas assim que seus olhos negros e minguados se cruzaram com os de Alma, ela observou neles uma emoção vívida, o corpo volumoso de Conrado buscando a cada menor movimento não anunciá-la, mas fracassando em ocultá-la no olhar anêmico.

Alma sentiu uma mão miúda e gelada apalpar seu ombro. Surpreendeu-se ao se virar e encontrar ali Rebeca Vasconcelos, os cabelos ruivos soltos em ondulações contidas e um vestido preto que cobria até seus joelhos franzinos.

"Olá, Alma." Rebeca murmurou ao lhe dar um abraço apertado, com fortes ares de minhas condolências. Rebeca era como uma aliada de festanças para Ananda, uma aliada sempre assídua nesses momentos. Alma a havia encontrado em umas três oportunidades - e já havia confessado a si mesma que às vezes, ao escutar de Ananda que a amiga a visitaria, sentia despontar em si algo que poderia ser descrito como uma alfinetada de ciúmes.

"Foi você quem fez o reconhecimento, não foi?" Rebeca falava cada palavra como se pisasse em ovos rachados. Alma a respondeu com um balançar arrastado de sua cabeça.

"Na verdade foi o meu namorado, Leon. Os policiais foram até meu apartamento e eu... não conseguiria." Rebeca a respondeu sem o uso de palavras, acariciando demoradamente o ombro de Alma antes de fazer uma menção de se afastar.

"Rebeca." Alma segurou com força sua mão. "O que a caixa de papelão fazia em seu carro? Quero dizer, o que Ananda fazia dirigindo o seu carro?"

Rebeca franziu as suas sobrancelhas afinadas e ruivas, suspirando fundo antes de respondê-la.

"Alma, o carro de Ananda não ligou. Algum tipo de falha na bateria, eu acredito. Era quase meia noite, e ela só dizia que queria chegar logo em casa. E eu deixei que fosse em meu carro." Ela deu de ombros, os lábios comprimidos. "Então ela me perguntou se poderia carregar nos bancos traseiros uma caixa de papelão. Disse que pela manhã, assim que despertasse, iria até seu apartamento para levar a tal encomenda que havia sido entregue em seu endereço. E disse também que custaria um pouco a buscar o carro na casa do Murilo Boaventura, e a me devolver o meu, pois também precisava falar com você."

Alma sentiu uma onda de tristeza inundar cada um dos seus ossos, tão fracos naquele instante. Ao ver Rebeca por fim se afastar dela após mais um abraço – dessa vez um breve, buscou Leon por todo o ambiente, jogando-se em seus braços assim que o avistou recostado em um canto, o seu próprio aspecto parecendo inconsolável perante toda aquela situação. Ao notá-la pressionando o cenho contra sua camisa, Leon segurou com cautela o rosto de Alma, acariciando as bochechas molhadas.

"Você já a viu, meu amor?"

Alma o respondeu com um não um pouco cochichado, um pouco chorado. Ele então roçou os lábios nos cabelos dela.

"Vá lá, meu amor. Você precisa de sua própria despedida, e acredite em mim, ela me parece estar em paz."

Em paz. Alma pela primeira vez se permitiu um sorriso - um esmorecido, mas ainda um sorriso. Mas antes precisava falar com eles. Com Isadora e Conrado.

Ao vê-la se aproximar, Isadora abriu os seus braços afilados de um modo materno e com um indício distante de alívio e tranquilidade. Tinha os cabelos acastanhados elegantemente presos em um coque apertado. Alma se enroscou ali - ela sempre havia estimado muito D. Isadora Ferraz, que a amparou de alguma forma quando tomou conhecimento de que Alma não mais tinha qualquer influência maternal.

"Alma, preciso que você vá até a minha casa, tenho algumas coisas que sei que devem ficar com você, minha querida. Quando esse inferno acabar." Isadora sussurrou ao inspecionar toda a capela, apalpando carinhosamente o rosto quente de Alma antes de prosseguir. "Mas sejamos honestas, minha querida. Ele não acabará, acabará?"

Alma fixou os olhos em Conrado. Cochichou um breve eu sinto muito, a mão distendida para cumprimentá-lo. E então ela precisou de tempo – tempo para criar a coragem que ainda lhe faltava.

E lá estava Ananda.

Não havia muitas flores ornando o caixão - apenas um pequeno conjunto de gérberas, as favoritas de Ananda. Ela de fato sempre havia dito a Alma como achava algo cafona e frívolo flores em velórios; Ela tinha os cabelos arrumados em pequenos caracóis e vestia uma roupa verde em tom esmeralda, a sua cor favorita.

E Leon estava certo. Havia impressa em seu rosto certa paz. Alma então tomou uma mão de Ananda entre as suas. Estavam frias, estranhamente frias. Acariciou com lentidão os caracóis afilados em seus cabelos castanhos. Encarou-a por minutos incontáveis.

Alma deixava Ananda partir.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now