Capítulo XXXII

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Markus abanava o rabo sem interrupções para descanso quando o chá de hortelã terminou sua fusão. Alma tratou de vestir logo seu casaco de lã, típico nas visitas que fazia a seu pai. Amália cortava o bolo de cenoura em fatias simétricas. As coisas de fato haviam mudado, Alma pensou enquanto observava a irmã se empenhando em completar sua atribuição de fatiar o bolo.

"Esse fim de tarde está frio para além de minhas expectativas." Benjamin comentou, estudando quaisquer reações das filhas ao seu comentário. "Bem que nós poderíamos nos acomodar os três, debaixo de cobertas no meu quarto. Como nos velhos tempos." Ele completou depois de estudá-las por mais uns instantes.

Eles faziam isso todas as tardes após a morte de Isa. Foi a forma que Benjamin encontrou de acalentar as meninas – e de se acalentar.

"Já vamos, papai. Vou preparar um punhado de tapiocas para nós comermos."

Essa era mais uma forma de reviver momentos gostosos – dessa vez momentos vividos na presença de Isa. A mãe das meninas preparava tapiocas todas as noites de sexta-feira, e quando havia um vento fresco do lado de fora, eles se sentavam em banquetas na varanda e observavam o movimento tranquilo das ruas.

Assim que as tapiocas estavam prontas, o bolo cortado e o chá servido em xícaras de porcelana pintadas, eles se dirigiram até o quarto pequeno de Benjamin, com Markus em seu encalço. Jogaram algumas colchas de retalhos em cima da cama e se enrolaram nelas sem demora. Benjamin carregava um livreto empoeirado. Alma logo percebeu que se tratava de Sonhos de uma noite de verão.

"Posso ler Lisandro. Alma, leia Hérmia e Amália, leia Helena. Os outros, decidiremos em breve."

"Papai, Amália" Alma interrompeu sem demora. "Tem algo que preciso dizer antes de mais nada." Ela disse, os olhos insistentemente voltados para um padrão de uma das colchas. Ao notar a atenção dos dois voltada para si, Alma soltou uma tosse discreta. "Bem... eu e Leon tomamos uma decisão importante."

Ela os encarou calada, como se aguardasse que dissessem algo, as mãos esfregando uma a outra. Benjamin e Amália, por sua vez, apenas a observavam, em uma espera silenciosa pela notícia. Alma então soltou um sorriso discreto antes de prosseguir em sua fala – mais uma vez adotando o método do band-aid.

"Nós vamos nos mudar para Bairro Junos Pontes dentro de alguns dias."

Amália e Benjamin continuaram apenas a encará-la, suas expressões agora ilegíveis para Alma. Amália partiu os lábios, balbuciando algumas semi palavras antes de conseguir formular suas ideias.

"Mas, Alma, por que assim, tão de repente?" Ela indagou, repousando sua xícara de chá em cima da escrivaninha talhada em madeira de pinho. Benjamin, como sempre, mantinha-se calado, os olhos tristes fixados em Alma.

"Estou precisando disso, Amália, tente me entender." Alma disse ao liberar o ar preso em seus pulmões. "Tenho passado por tantas coisas nos últimos tempos... coisas que só agora estou começando a processar... Minha doença, a morte de Ananda... E eu preciso de ar fresco, irmã; de um recomeço. Você me compreende?" Ela buscava os olhos de Amália, mas a irmã os desviava com segurança. Amália deu de ombros despretensiosamente antes de fitar Alma, um sorriso singelo nos lábios.

"Posso dizer que estou tentando?"

Alma abriu um sorriso em um súbito refolgo.

"Isso me é suficiente." Ela segurou as pontas dos dedos da irmã. "Ao menos por enquanto."

"Bem, vou levar os pratos e xícaras para a cozinha." Amália empilhou as louças e se arrastou para a beirada da cama. Ao se ver sozinha com Benjamin, Alma saltou para seu lado, deitando a cabeça no travesseiro.

"Pai?" Ela murmurou ao notar a atenção de Benjamin dispersa.

Ele respondeu com uma queixa quase inaudível. Alma se prendeu ao braço dele, os olhos esverdeados pidões.

"Ora, papai, vamos lá! Vou estar bem ali, logo ao lado. Podemos nos ver quando bem entendermos."

Ele mais uma vez respondeu à filha apenas com um burburinho. Alma o encarou com olhos de quem aguardava ouvir qualquer palavra.

"Ah, não me olhe assim, filha. Não espere que eu comemore. Vou perder sua presença constante aqui, sua companhia, praticamente a única que tenho neste fim de mundo, neste fim de vida. Então não espere que eu comemore."

"Não espero que comemore, papai. Apenas quero que busque entender minha decisão." Ela se amparou ainda mais no braço do pai. Benjamin segurou com firmeza uma das mãos de Alma, as suas próprias pouco firmes, já murchas e debilitadas pelo tempo.

"Você vai ser feliz, minha filha? Me diga que sim, e isso é tudo que vou querer ouvir de você."

Alma não respondeu à indagação do pai com qualquer palavra proferida. Ela apenas acenou a cabeça; e o fez com uma veemência da qual nem sabia ser capaz. Mas seus olhos, estes disseram tudo aquilo que quaisquer palavras escolhidas por ela jamais poderiam expressar. Isso arrancou um sorriso trêmulo de Benjamin, e ele agarrou sem muita estabilidade uma das mãos da filha, enchendo-a de beijos.

"Agora sim, minha filha. Agora sim, seu velho pai pode ficar feliz. Sempre que estiver bem, eu ficarei bem." Ele deu tapinhas amorosos na mão de Alma.

"Obrigada, papai. De verdade." Ela então se sentou em um salto repentino, dando uma bitoca na cabeça calva de Benjamin. "Bem, agora acredito que eu deva dar uma mãozinha a Amália. Posso levar o bule de chá? Já terminou de comer sua tapioca?" Ela esticou os braços e remexeu os dedos, pedindo os utensílios de cozinha. Benjamin apenas esticou as mãos enrugadas, entregando à filha o bule e o prato vazios.

Estando fora do abrigo aquecido formado pelas cobertas de retalho do pai, os pelos dos braços de Alma se eriçaram devido ao vento gelado que espreitava por entre os vidros abertos das janelas. Logo ela se deparou com Amália, que observava absorta pela fresta de uma das janelas da pequena cozinha a tempestade que se formava no horizonte.

"Você se lembra? A mamãe adorava nos mostrar as tempestades se aproximando, principalmente aos fins de tarde."

Alma sorriu sua afirmação, enquanto Amália apoiava-se no peitoril da janela. O vento balançava em um compasso os cabelos acobreados da médica.

"Amália..." Alma sussurrou. "Vou sentir muito a sua falta..." Ela finalizou ao se sentar em um dos tamboretes que cercavam a mesa de madeira.

Amália a encarou, uma onda instável de emoções em seu olhar. Alma então puxou o tamborete ao seu lado, dando dois tapinhas convidativos na superfície e sorrindo para a irmã.

"Você voltará para nos ver com frequência, Alma?" Ela indagou ao encolher os ombros e se sentar, desarmando-se de sua severidade comum e encarando a irmã caçula.

"Ora, Amália, claro que vou! Ao menos uma vez por mês." Ela respondeu, passeando com os dedos pela bochecha da irmã, que por fim se permitiu sorrir um sorriso largo.

"Vamos, então, porque papai deve estar criando raízes no quarto." Amália fazia menção de se levantar de seu tamborete quando Alma a agarrou pelo braço.

"Eu sinto muito." Ela cochichou de modo ameno, mil sentimentos transbordando por seus olhos e suas palavras.

"Sente pelo quê, Alma?" Amália franziu suas sobrancelhas, sentando-se mais uma vez no tamborete.

"Sabe qual é a verdade, Amália? Eu sempre te admirei. Além do que jamais poderia expressar. E talvez por isso tenha me fechado tanto. Não ter sua aprovação, e viver um conflito constante entre querer ser como você e precisar ser uma outra coisa – ser livre."

Alma passou a estudar a expressão da irmã. Encarando por um instante os padrões na mesa de madeira, Amália tinha os olhos já úmidos e pensativos. Depois de alguns segundos, passou a encarar Alma, permitindo-se um sorriso e segurando uma das mãos da irmã entre as suas.

"Mamãe estaria tão orgulhosa de você, Alma!" Ela tinha a voz falha, entrecortada. "Assim como eu estou."

Alma sorriu, sorriu como há muito não sorria na presença de Amália.

"Agora, vamos lá? Sonhos de uma noite de verão nos aguarda ansiosamente." Amália soltou uma risada abafada.

E mais uma vez enroscados entre muitas cobertas de retalhos, eles imergiram em um novo universo.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now