Capítulo VI

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Alma sentiu uma inconsistente cócega em sua testa. Hipólito nunca perdia o hábito de despertá-la daquela forma, com muitos gracejos e ronronar. Ela sorriu morosamente e acariciou os muitos pelos azul-prateados de seu gato. Sempre despertava com um bom humor matinal fora do comum quando ele cumpria o papel de seu despertador.

O quadro havia sido finalizado a tempo e já se encontrava embalado no plástico em um canto isolado de seu quarto. O sorriso em seu rosto estendeu-se quando ela se recordou pela primeira vez naquela manhã que tudo estava concluído. A pintura tinha os mais belos aspectos de saudades, entusiasmo, de pura e profunda existência. Assim como ela havia planejado.

Arrumou-se sem muita demora, pegando em uma almofada surrada de sua sala um casaco de linho do mais forte tom de mostarda. Procurou as chaves de seu chevrolet, apressou-se em apanhar o quadro e partiu. Acabaria se atrasando se decidisse se demorar por mais um minuto. E ela tinha aversão a seus próprios atrasos.

De perto o edifício Empire Building parecia ser ainda mais colossal que à distância. Um ambiente amplo, o ar até pareceu a ela mais brando que em outros lugares. Ela havia chegado à extensa porta de mogno que dava entrada ao escritório de Álvaro. Ajeitou despretensiosamente os cabelos, como de costume amarrados em um nó despreocupado. Aprumou em um sacolejo as roupas e então bateu à porta. Ele vestia uma camisa social de um lilás apurado quando a recebeu. Um sorriso jovial revelava seus dentes luzidios quando acenou para que Alma adentrasse em seu escritório.

"Fico feliz em ver que tenha conseguido finalizar a encomenda a tempo. Venha, por favor, entre. Gostaria de algo? Tenho whisky, conhaque. Bem, creio que não sejam as bebidas mais recomendadas para tão cedo. Tenho suco de maçã e água tônica. Sinta-se à vontade." Ele dirigiu-se à estante de madeira envernizada onde as bebidas se encontravam, correndo as mãos delgadas e sofisticadas por entre seus fios de cabelo meticulosamente desgrenhados. Ao fundo tocava em volume baixo a versão de La Vie en Rose cantada por Michael Bublé e Cécile McLorin Salvant, Alma logo reconheceu.

"Água tônica, por favor." Ela se resumiu a quatro curtas palavras, sentando-se em um dos pequenos sofás. Nem sabia se gostava de água tônica, verdade fosse dita. Mas algo que lhe parecia estúpido a fez se sentir constrangida com a possibilidade de pedir em voz alta um bom copo de suco de maçã gelado e adocicado.

Como era ainda mais luminoso aquele espaço! Amplo, o gabinete ostentava uma atmosfera deliciosamente branda e apurada. Os olhos verdes de Alma passeavam e saltavam interessados por cada parede de cor branco gelo quando Álvaro se sentou à sua frente, rapidamente capturando sua atenção. Ele então esticou a mão, entregando a ela um bolo de notas aprumadas e novas que faltavam para completar o pagamento.

Alma abriu um sorriso sóbrio. Não por receber finalmente o dinheiro em sua totalidade, mas mais uma vez por recordar a finalização de seu trabalho. E como ela estava contente com aquela pintura! - talvez fosse sua favorita. Havia nela de fato um frescor nostálgico, uma volta a um passado que parecia a ela tão remoto mas ao mesmo tempo tão presente. Sua atenção então voltou a se fixar em Álvaro. Pela primeira vez ela percebeu uma linha tênue em sua têmpora. Uma linha que devia remeter a muitos momentos de satisfação. A incontáveis sorrisos, como aquele que se formava em seus lábios afilados naquele exato momento.

"Estive pensando por um bom tempo em como agradecer pelo trabalho prestado a mim por você, Alma. Bem, decidi sem precisar pensar muito a respeito que quero levá-la para jantar em algum lugar. Ao Mangiare, talvez. Aprecia comida italiana?"

À sua pergunta seguiu-se um prolongado silêncio. Ele passou a percorrer a extensão de suas pernas com as mãos, a respiração tornando-se levemente perceptível. Talvez estivesse nervoso, Alma pensou. Não, é sempre tão confiante, não parece o tipo de homem que se sente em nada ansioso, sob quaisquer circunstâncias.

"Quero conhecê-la, Alma. Compreendê-la. Creio que você se assemelhe a um enigma para mim." Alma deve ter imediatamente e de modo um tanto quanto evidente deixado transparecer sua indecisão, pois em um instante ele se inclinou, olhando-a de forma mais intensa e erguendo um alongado dedo indicador. "Uma noite. Por favor."

Sempre que se sentia contrariada Alma arregalava os olhos, fixando-os em lugar nenhum, e franzia visivelmente o cenho. Ela não estava disposta a sair com Álvaro. Ele era decerto um homem muito bonito. Era fato que tinha um frescor em seu semblante, seu sorriso circundado por um charme que pegara desprevenida até Alma. Mas aquele homem ainda se tratava de seu cliente. Decidiu que usaria isso a seu favor.

"Álvaro, você é um homem interessante, confesso. Mas é meu cliente. Trabalho para você. Isso não seria correto, consegue compreender?"

Álvaro sorriu após ouvir tal resposta.

"Na verdade, Alma, não sou mais seu cliente. Está acabado." Ele argumentou, apontando para o quadro.

Alma sorriu, deixando transparecer em sua expressão uma derrota. Erroneamente, pois ao seu semblante vencido não se seguiu um sim. Ergueu-se de seu assento num ar plácido, esticando uma mão solene a Álvaro.

"Foi extremamente proveitoso para mim, este nosso negócio. Espero que também o tenha sido para você."

Álvaro não pôde evitar um sorriso, um daqueles, dados por quem sabe que agora deve se preparar para a caça e se deleita com a mera ideia.

"Se precisar de meus serviços de novo, sabe como me encontrar." Ela disse antes de se esgueirar pela porta de mogno. Riu consigo mesma. Ela o provocava sem sequer se dar conta de que o fazia.

E Alma nunca havia sido assim.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now