Capítulo III

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A cada dois domingos Alma visitava seu pai. Precisava dirigir por uns quarenta minutos até chegar à propriedade onde Seu Benjamin vivia. Tal distância decerto irritaria a muitos, mas não a ela. Gostava de dirigir. Escancarava cada uma das janelas do carro, colocava alguma música em seu tocador aumentando o volume o máximo que podia, e assim quaisquer quarenta minutos passavam como se fossem cinco.

Benjamin vivia em um lugar de aparência em muito campesina, onde o vento sempre soprava diferente e o cheiro da grama fresca preenchia o ar. Ele sempre dizia com grande assertividade que aquilo era tudo de que precisava. E para Alma aquele lugar tinha um forte e saudoso cheiro de infância.

Ela já se aproximava da pequena varanda quando a porta de madeira envelhecida rangeu, anunciando a presença de seu velho pai.

"Vejam só se não é minha filha querida que resolveu visitar seu acabado pai para trazer um pouco de felicidade ao seu coração, já tão cansado de viver sozinho."

Benjamin havia completado seus 65 anos há precisos nove meses. Era ainda jovem, de fato, mas seu coração, já carregando tão cedo o peso de um infarto recente, deixava-o exausto em espírito e aparência.

"Olá, meu pai. Trouxe para o senhor um doce de goiaba daqueles. Comprei no Sacolão Central como da última vez, o senhor se lembra?"

"Ora essa, minha filha, claro que me lembro. Certos prazeres da vida são inesquecíveis. E vocês, jovens, hein? Sempre achando necessário perguntar aos mais velhos se eles se recordam das coisas. Nunca vou entender vocês. Eu mesmo nunca fui um jovem assim."

Já estando dentro da casa, Alma repousou sobre o balcão da cozinha as sacolas que carregava com esforço, beijando em seguida a cabeça já esbranquiçada do pai.

"O senhor fala como se não fosse mais jovem, papai."

"Ah, minha filha, tenho sentido mais e mais dores a cada dia. Todas as manhãs eu faço uma oração pedindo a Deus que nem você nem sua irmã tenham puxado a mim."

"Mas o senhor tem se cuidado, não tem?"

"Mas é claro que tenho. Agora sente-se, minha querida. Tem um tamborete logo ali, ao lado da geladeira. Traga-o à mesa. Vou preparar um chá de capim-limão para você."

Alma ouvia a mesma coisa a cada visita que fazia ao seu velho pai. Benjamin sempre teve uma relação especial com os chás. Chá de boldo, de capim-limão, chá preto. Estava sempre os oferecendo às filhas, fizesse sol ou chuva. Todos eram bons para algo, ele dizia.

A chaleira já assobiava em um tom agudo quando Benjamin se pôs a atravessar a cozinha a passos largos.

"Eu vou, papai, eu vou. Agora sente-se aqui o senhor."

"Obrigado, obrigado, minha filha." Benjamin gemeu ao se sentar no tamborete, as mãos já enrugadas apalpando o baixo de suas costas. "Como anda o trabalho?"

"Estou pintando um quadro inspirado em algumas de minhas memórias de infância. Lembra-se de quando me levava para pedalar próximo ao Lago Viveiros?" Ela sorriu consigo mesma ao ouvir uma saudosa afirmativa do pai. "Esse trabalho é importante, papai. Meu cliente é um homem de status, um dos advogados mais importantes de minha cidade. Isso me abrirá muitas portas, eu espero." Ela despejava pequenas folhas na tigela onde antes derramara a água aferventada.

"Mas preciso dizer, querida, que não gosto desses homens muito poderosos. Isso é tudo com que eles se importam: poder."

Alma observava absorta as minúsculas folhas dançarem na superfície da água, traçando inúmeros caminhos entrecruzados. Markus, vira-latas de seu pai, pôs-se entre as pernas da moça, balançando o rabo comprido. Alma olhou para baixo, sorrindo e balbuciando um par de gracinhas para o cão.

"Tudo o que me importa é seu dinheiro e o que um homem em sua posição pode mudar em minha carreira, papai. Só vou pintar uma tela para ele, nada mais."

"Você é quem sabe, minha filha. Sempre foi uma menina tão inteligente! E agora que está se transformando em uma mulher madura eu só a percebo se tornando cada vez mais e mais sagaz."

"Obrigada, papai. Só me importo com o que o senhor pensa de mim, e ninguém mais." Alma repousou duas xícaras fumegantes em cima da mesa e beijou a têmpora do pai.

"Tem visto sua irmã? Deixa-me muito triste que vocês não se vejam com maior frequência. Moram a o quê, quinze minutos uma da outra?" Ele tomou um longo gole de seu chá."

"O senhor sabe muitíssimo bem que não é nada fácil para nós nos encontrarmos, papai. Amália trabalha em média 8 horas por dia, e são oito horas muito intensas. Ela precisa descansar." Alma pausava brevemente a cada 10 palavras para soprar seu chá.

"Será que é esse mesmo o motivo para vocês se verem tão pouco, Alma? Sei que há muito atrito entre você e Amália."

"Ela aproveita cada oportunidade para menosprezar meu trabalho, papai. Ela não respeita minha escolha, e isso eu não aceito."

"É claro que não é isso, minha pequena. Sua irmã respeita você e suas decisões, e talvez seja por isso mesmo que às vezes ela aja de formas que não te agradam. Você precisa entender que vocês têm formas muito diferentes de enxergar a vida e perceber o mundo. Ela só quer o seu bem."

Alma decidiu não prosseguir naquele assunto, pois já havia passado por momentos como aquele incontáveis vezes antes. Pegou uma colher de chá que repousava sobre a mesa e adoçou sua bebida. Lá fora trovejava alto, uma forte chuva sendo anunciada.

"Que forma estranha de demonstrar respeito. Há uns dias ela me visitou. Levou para mim um porta-temperos de presente e pediu que servisse um jantar para nós três. Eu topei mas, como havia previsto, já não tenho qualquer certeza se quero seguir em frente com tal ideia."

"Faça isso, meu amor, por favor. Por mim. Se vocês souberem se controlar um pouco mais, sei que a noite será muito agradável."

Alma pensou por um instante. Seu pai já tinha 65 anos. Ele merecia mais um momento ao lado dela e de Amália. A última coisa que Alma queria era viver com algum arrependimento num futuro por não ter feito algo que decerto deixaria seu velho mais feliz.

"Está bem, papai, jantaremos todos juntos no sábado. E o senhor também deve aprender a se comportar melhor. Nada de me pedir frituras." Ela apanhou uma das mãos cansadas do pai, beijando-a afetuosamente. Logo algumas densas gotas de chuva foram ouvidas esparramando-se no telhado de amianto do casebre. Alma levantou-se apressada e correu para fechar ambas as janelas que clareavam um pouco a escura cozinha de Benjamin. "Nossa, a chuva chegou com toda força. Escute só como essas gotas estão encorpadas."

"Aqui é sempre assim, com muitas chuvas barulhentas e demoradas. Nada me faz mais feliz. A não ser, é claro, você, sua irmã e Markus." Ele disse ao esticar com certa dificuldade a mão e afagar a cabeça do cachorro, que havia se sentado e abaixado ambas as orelhas pontudas à procura de alguma atenção por parte de seu dono. "E agora que a chuva nos abençoou podemos nos sentar na sala para lermos alguns bons poemas."

Além dos chás as poesias também eram rotineiras nas visitas que Alma fazia ao pai. Ela sentou-se confortavelmente na poltrona xadrez da sala, encolhendo as pernas devido ao frio que vinha com a tempestade. Benjamin passeou os olhos por sua estante, decidindo-se por um livro pequeno e empoeirado. Devia ser bom, Alma pensou, olhando para o objeto que o pai agarrava. Decidiu que faria um pudim de caçarola para sábado.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now