Importunada

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Camille havia acabado de sair do banho quando ouviu o tumulto no interior da casa. Passos, coisas sendo arrastadas, portas sendo aberta e fechadas, vozes... Terminou de secar o excesso de água dos cabelos e procurou uma camisola despretensiosamente. Todas as suas roupas de baixo eram sensuais,  então não fazia sentido procurar algo diferente do que aquilo representava: um uniforme. Um manto que não lhe cobria,  mas ao contrário, revelava-lhe o corpo como prova de sua profissão. Ou como mais corretamente lembrado, sua sina.

Quando terminou de se vestir e pentear, cobriu-se com um robe azul marinho bordado em linha branca com as iniciais A.A.B.

Já estava perto da hora do jantar mas ela estava cansada das horas de exercício sobre o cavalo. Havia percebido, a contra gosto,  que seguido as orientações de Ana Terra evoluíra muito mais rápido e sem desagradáveis surpresas ou sustos. Sentia-se enraivecida e enciumada. O rapaz Josué parecia sentir medo e admiração pela morena bruta e, de acordo com os padrões da época, pouco feminina. Outros funcionários da fazenda sempre tratavam Ana Terra com respeito e, até quando ela não estava presente seu nome era dito com notável temor. Camille percebeu logo que o magnetismo que Ana parecia ter sobre os cavalos se estendia as pessoas à sua volta de forma natural e espontânea. Todos pareciam tomados por um espírito de reverência quando a domadora de cavalos estava presente. Embora parecesse que ela mesma era alheia à mudança de comportamento das pessoas ao seu redor. Como uma abelha rainha, simplesmente seguia sua natureza que é de dominar e pôr ordem na colméia, que sem ela, é um caos.

Cansada e desanimada pela insistência dos próprios pensamentos,  Camille toca a campainha e aguarda algum empregado atendê-la. Depois de alguns minutos de espera,  toca novamente. Apesar de curiosa e com fome, ela ainda não quer encontrar com os recém chegados. Pelo menos não com sua aparência abatida pelo cansaço.
Impaciente, toca a campainha pela terceira vez e debruça-se na porta tentando ouvir se há passos no corredor. Caminha inquieta indo e vindo enfrente a porta até finalmente desistir de esperar ser atendida. Calça seus tamancos pretos emplumados e sai  porta a fora pelo corredor em direção à sala de jantar, onde imaginava que estariam todos aguardando a ceia.

Encontra a mesa posta mas o cômodo vazio. Dá a volta até o final e entra no corredor que dá acesso à cozinha e no final deste, a sala de visitas. A casa ainda a confunde um pouco, mas a disposição dos cômodos é feita de forma paralela, seguindo os corredores em forma de "U", mudando apenas a posição das portas. Se não é no corredor da direita, ela volta e toma o outro. Alguns cômodos possuem uma porta na parede do fundo que os ligam aos cômodos do corredor oposto. Mas como Camille ainda não gravou quais, prefere voltar o caminho todo do que ficar tentando a sorte de porta em porta  (Isso cogitando que todas estejam abertas). A única exceção é o salão que é grande o suficiente para ligar um corredor ao outro sem paredes intermediárias,  contando apenas com as pilastras que dão sustentação ao telhado.

Camille não sabe por quanto tempo ficará na fazenda de Antonio,  nem se faz algum sentido tentar gravar o mapa da casa na memória, mas prefere se ocupar com isso à pensar nas outras possibilidades. Ademais,  se depender dos esforços dela, ainda ficará naquela casa e naquele conforto por bastante tempo.

Quando vira na segunda curva do corredor, ouve novamente as vozes e passos de antes. Sente que as vozes estão exaltadas e os passos desconexos. Mas ela sabe que não se trata de uma briga. Conhece bem aquele tipo de som tão familiar: há pessoas bêbadas tagarelando e desabando encima de outro alguém. E ela reza, mesmo em seu ceticismo,  que seja lá quem for, não tenha a cisma de cair encima logo dela como a maioria dos bêbados d'A Glamorosa costumam fazer.

Ao aproximar-se percebe que são todas vozes femininas. Nenhuma ainda clara o suficiente para ser inteligível.
Na sala de estar, as coisas ficam claras: há uma mulher de meia idade, bonita e muito bem vestida e obviamente sob o efeito do álcool. Com ela estavam Ana Lua, que tentava mantê-la de pé junto com Tininha e um silencioso João vinha atrás,  carregando caixas e sacos empilhados em seus braços.

"Aaaaaaah, mas não seja tão carrancuda, minha adorável sobrinha neta. Carrancas deixam marcas no rosto. Não é naaaaada jovial. Hahaha" balbuciava em tons agudos enquanto tocava o rosto de Ana Lua,  'desmanchando' linhas de expressão invisíveis.

Assim que a viu, Ana Lua paralisou. Camille se envaideceu com o desconforto da jovem loira. Gostava de sentir que era temida. Levantou o queixo insolente e asperamente. Entretanto,  a própria estranheza da situação tortou sua ação vazia e a curiosidade foi-lhe mais forte que o orgulho.

"Mas que diabos está acontecendo nesta casa? Toquei a campainha várias vezes e ninguém me foi atender!" - ralhava em alta voz mas sem se dirigir a ninguém especificamente.

De repente, a senhora endireitou a  postura e com uma expressão de reconhecimento no rosto aproximou - se lentamente de Camille que a encarava desconfiada.

"Imagino que você deva ser Camille. Estou certa?"

Antes que a jovenzinha pudesse abrir a boca, ouviu um som agudo porém abafado e então uma dor seca do lado esquerdo do rosto. Aquela senhora havia lhe batido. Um tapa. Porém,  o som fora abafado pelas luvas que a mulher usava.

"Consuelo mandou lembranças."

Ao dizer isso, retirou-se levando Ana Lua a reboque, muito mais sóbria do que aparentava de início. Tininha as seguiu logo atrás carregando um sorriso disfarçado no canto da boca, enquanto João, de cabeça baixa, continuava no mesmo lugar sem saber direito o que fazer com todas aquelas bagagens em suas mãos.

Por um momento, ele olha para Camille que ainda assimilava o que lhe havia acontecido. Ela percebe o olhar do homem e despeja sua fúria no pobre sujeito.

"O que está olhando, preto imundo? Vá comer farelo e lavagem, e me deixe em paz!"

Com voz tranquila ele responde. "Vou sim senhorita. Pelo menos os dente tudo eu ainda tenho na boca." - E sai na mesma direção em que as mulheres seguiram, deixando Camille ainda mais raivosa e humilhada. Mas ela não deixaria assim. De forma alguma as coisas haviam acabado.
Mas primeiro, precisava pensar em como aplacar a ira de Consuelo que ela sabia que teria de enfrentar mais cedo ou mais tarde.

Tocando a face quente da raiva e do tapa, ela volta já sem fome, ao quarto para esperar por  Antônio.

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now