Acolhida (?)

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Os minutos se passavam lentamente, mas logo o sol não daria mais o ar de seu brilho. Ana Lua já não o via mais no horizonte pois se escondia atrás dos morros e suas charmosas vegetações. A jovem apertou o relógio de bolso contra o peito, tentando fazer com que o rítmico compasso dos ponteiros regulasse também o agitado e angustiado coração de Ana.
Ela admirava as flores do campo que ladrilhavam envolta do cascalho nos trilhos do trem. Ao longe, ainda que a luz declinasse velozmente, identificava o que pareciam pequenos buquês coloridos em meio à vegetação verde nas corcovas da terra. Ipês roxo e do cerrado coloriram de violeta, amarelo e branco o fundo predominantemente verde dos morros da região. Aquela imagem lhe parecia uma pintura impressionista sendo pintada pela própria mão divina. As luzes do céu que variavam as cores entre o azul, o laranja e o rosa, junto à vegetação com tantos tons de verde e algumas pinceladas coloridas dando todo movimento tão admirado nas famosas obras de arte. Pensando nisso, Ana Lua sorriu. Talvez aquele terrível incidente tenha sido planejado por seu pai. Uma forma de permitir que ela admirasse a beleza natural de sua terra natal e de alguma forma se conectasse com aquilo...?

Respirou fundo e voltou a realidade. Ela não era mais uma criança fazendo 7 anos. Ela era uma jovem de 20 anos, 11 meses e 17 dias. Em menos de um mês faria maior idade e poderia administrar sua parte da herança... Seja lá o que sobrasse depois que as dívidas com o banco e os agiotas fossem quitadas.
Talvez ela virasse professora. Poderia abrir uma escola no povoado mais próximo. Ou se candidatar à governanta na casa de alguma família abastada, ou até mesmo tutora de seus filhos... Ela não tinha tantas opções assim, mas talvez sua escolaridade e o fato de falar 3 idiomas pudessem ajudar. Se tudo desse errado, ainda poderia viajar para a França. País muito mais progressista. Lá com certeza habilidades de pessoas como ela teriam muito melhor aproveitamento.

Cruzou as pernas, enfurecida com a crinolina do vestido. Ultrapassado, desconfortável... Horripilante! Era um modelo antigo com anquinhas. Na França ninguém mais usava crinolina - Armação de ferro que atribuía volume às saias substituindo as inúmeras anáguas. Ana Lua se incomodava profundamente com como o Brasil era atrasado.
A moda, sempre o resto da Europa. A indústria, sempre dois passos atrás do resto do mundo desenvolvido. A política? Ah, a política... Uma verdadeira vergonha latina. Ainda eram um dos poucos países onde as mulheres conseguiam direitos apenas levando à justiça. Ainda não podiam votar, muito menos candidatar-se à cargos públicos. Era o cúmulo serem o último país à ter regime escravocrata.
Tantas leis foram criadas para não resolverem absolutamente nada contra a crueldade da escravidão.
Pelas grades da escola ela via como os pretos eram tratados. Pior que animais. Aquilo não era justo. Eles tinham direito à dignidade também.

Um vento frio um pouco mais  forte tocou-lhe o  rosto, despertando-a do devaneio anárquico. Olhou em volta e percebeu que já não havia luz alguma. Poucas estrelas cintilavam distantes e a lua ainda não dera o ar da sua graça. "Ah Ana Lua... Você tem que se preocupar com sua própria dignidade no momento..." - disse em voz alta enquanto tentava pensar no que fazer.

Ouviu um relinchar de cavalo. Virou o pescoço na direção do som e viu dois pontos de luz flutuantes. Apurou os ouvidos acima do cricrilar dos grilos. Ouviu o bater de cascos na terra seca e vozes humanas.
Primeiro sentiu-se aliviada. Logo depois, temeu. Se não fosse da parte de seu pai, estaria salva ou perdida?

Levantou-se, desceu da plataforma e ficou em pé na estrada, de frente à carroça que se aproximava. Fez o máximo possível para controlar os tremores de frio e medo. Se morresse, morreria de cabeça erguida. E quando preparava-se para questionar quem se aproximava, ouviu uma voz feminina gritar: "É a menina Ana? Ana Lua?"
Atônita e também aliviada, respondeu: "Sim. Sou eu. Vocês demoraram..."

-"Oras, demonstre alguma gratidão. Eu deveria estar na minha cozinha fazendo quitutes e não buscando a filhinha do patrão. Isso não é serviço de cozinheira. E depois..."

-"Chega, Tininha. Está abusando da sorte." - outra voz feminina. Essa mais contida e grave.

Conforme se aproximam, os borrões se tornam silhuetas, e as silhuetas tomam forma: uma mulher anciã bem vestida, uma menina preta de olhos brilhantes e agitados, e o jovem mais belo que Ana Lua já havia visto em toda sua curta vida até ali.

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now