Muitas Responsabilidades

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Quando Ana Terra terminou de carregar a carroça com as sacas de sementes e os temperos que o pai havia pedido, já estava tarde para comer. Deixaria para almoçar em casa (provavelmente já chegaria na hora da janta, mas pelo menos ainda poderia aproveitar a luz do dia na estrada). A cidade ficava a apenas algumas horas a cavalo da estância de seu pai.

Ele havia ganho a oportunidade única de comprar a área 8 anos antes. O velho, dono da fazenda, havia brigado feio com o filho. Antônio, revoltado com os desmandos do pai, ameaçou mandá-lo para um hospício. Foi aí que o velho enlouqueceu. Vendeu e arrendou grande parte da propriedade para os próprios funcionários e alguns pequenos produtores das redondezas. Daniel foi um dia felizardos.
Trabalhando e cuidando sozinho de uma filha pequena e de saúde frágil, fez tudo que estava a seu alcance para pagar o valor pedido - que na verdade, nem era muito - vendendo animais, objetos pessoais e até assinando promissórias. A maioria já estavam pagas. Mais duas apenas e estaria completamente quitado.

Com o adoecimento de Daniel, Ana Terra trabalhava o dobro para juntar o dinheiro da dívida e não deixar faltar os remédios do pai.
E, com o então recente falecimento do velho ranzinza, Antônio assumiria a fazenda de vez. E isso preocupava a jovem amazona.

Subiu na carroça e começou a viagem de volta. Com a carga, levaria mais tempo que o habitual para chegar em casa. Miçanga era uma égua forte, mas já estava com certa idade, então Ana não queria abusar de sua energia.

O garanhão que o capataz da fazenda de Antônio havia comprado num leilão era promessa de boa recompensa. Mas a moça quase não tinha tempo pra cuidar dos próprios animais, quanto mais de adestrar um animal rebelde como aquele.

Ana acreditava que amansar um alasão era tolice. Que ele deveria ser aproveitado para reprodução, e não montaria ou carga. Mas o orgulho do capataz não permitia que ele ouvisse a sugestão de uma mulher.
Porém, o mesmo não poderia ser dito de seu dom em domar e adestar cavalos de Ana. Todos das redondezas recorriam a ela.

Logo que chegasse e descarregasse tudo, tomaria a refeição e iria procurar Carlos - eles precisariam do dinheiro do capataz o mais rápido possível.

A jovem tanto pensava nos problemas que enfrentava (a saúde do pai, as necessidades dos animais, a divida do terreno, a recente morte do antigo credor e a chegada do novo...) Que nem percebeu o tempo passar.

Quando seu por si, estava chegando na pequena casa de barro, já com o céu escurecendo. Não viu as luzes dos lampiões dentro da casa, mas ouviu os gritos e o barulho alto de coisas sendo arremessadas e quebrando.

Apressou-se em se aproximar, e então viu os três cavalos junto à porta com um cavaleiro tomando conta. Era alto e magro. Tinha o cabelo longo, preso num rabo de cavalo baixo. Estava agitado e parecia desconfortável com algo.

Primeiro Ana Terra imaginou que os roubavam. Mas olhando melhor, notou que um dos cavalos era a égua Appaloosa Frost de Carlos. Um animal bravo e implacável... Tão contraditório da própria raça.

Se o jovem peão estava de babá de Nevada (o nome da égua) era compreensível seu nervosismo. Mesmo Carlos tinha que tomar cuidado com as mordidas repentinas do animal. Por algum motivo inexplicável, ela só respeitava Ana Terra. Daí a preferência do povo de contatar Ana para adestrar os cavalos. As notícias se alastram rápido no interior.

Ela desceu da carroça a uma pouca distância, ocultada pelas jabuticabeiras do pequeno pomar à frente da casa. Sacou a faça de caça da cintura e se aproximou silenciosa de Nevada. "Shiiiii. Boa menina" disse, enquanto deslizava a mão por seu pescoço e se aproximava do homem desconhecido.

Agarrou o rapaz pelo cabelo e chutou a parte de trás de seu joelho esquerdo. Com a faca pressionada no pescoço, o moço não teve outra saída: contou que era novo na fazenda de Antônio e estava junto com Carlos e Zé Leco para "dar um aviso" sobre a nova "política de cobrança" das dividas.

Ana queria saber se o pai estava bem. O rapaz afirmou que aí chegarem, encontraram a casa vazia. Os dois mais antigos entraram pra "fazer uma busca" e o deixaram de guarda. Era tudo.

Ana Terra estava tranquila. O dinheiro sempre ficava muito bem guardado espalhado em árvores na mata. Só ela é o pai conheciam as localizações. Se o próprio Daniel não estava ali, não havia nada realmente valioso ou insubstituível com que ela precisasse se preocupar. Exceto...

Ana ficou calada um momento, percebeu algo diferente dentro da casa. Os barulhos de coisas quebradas foram substituídos por risadas e sons de comemoração. Eles haviam encontrado a garrafa.

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now