Convocação

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Domingos arrumou mais uma vez os documentos na pasta, mesmo sabendo que tudo estava na mais perfeita e impecável ordem. Sua jovem esposa havia arrumado, e ela era extremamente metódica. Podia-me dizer que sabia mais de direito do que o próprio Domingos, que era advogado.

Ele casou-se com a jovem francesa logo depois de ficar viúvo. Seu primeiro casamento durou 27 anos até a tuberculose levar sua dedicada e temperamental Rosa Maria. Depois de alguns meses, conheceu o homem que não imaginava tornar-se seu futuro sogro.

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Eram companheiros de copo. Ficaram amigos, então sócios. Domingos passou a cuidar dos direitos da família e da empresa da mesma. Uma fábrica de maquilagem feminina - mercado que crescia cada vez mais no Brasil. Por seu olhar empresarial, o sogro de Domingos viu no país tropical a oportunidade de expandir seu já bem sucedido negócio da França. O dinheiro e a política antiquada e retrógrada do Brasil encheram os olhos do velho conservador. Sem falar dos planos para a filha caçula...

Monique, era jovem e enérgica. Inundada pelos ideias iluministas, era a ovelha desgarrada de uma família reacionária, católica ortodoxa e pró monarquia. Não à toa, deixaram seu país natal em busca de um tão avesso à mudança e antiquado quanto seus conceitos. Então, em seu modo de pensar arcaico, deixa-la só nesse país estranho e casa-la com um homem quase 40 anos mais velho era a forma mais correta de "amansar seu espírito rebelde".

"Mulher com muitas idéias, é sinal de que lhe falta um homem." - ele dizia quando, depois da missa, afogava- se em álcool, ópio e prostitutas.

Domingos ficava constrangido. Sua primeira esposa era dedicada ao lar. Mesmo tendo empregadas e escravas, gostava de cuidar das coisas do marido pessoalmente. Mas o fato de ser tão doméstica, não a transformara numa mulher domesticada. Era forte, determinada. Discutia com Domingos todas as informações dos casos em que trabalhava. Não permitia que ele dormisse fora de casa. Não tolerava que ele culpasse as empregadas ou escravas pela sua própria desorganização... E ai dele se sujasse o chão de madeira com barro quando chegasse. Já o havia obrigado à limpar diversas vezes durante seu casamento. Era uma mulher fascinante.

Por mais que não se amassem, ela cuidava dele (e ele à respeitava) como nenhum outro casal conhecido por eles era capaz de ser. Domingos lamentou a perda de Rosa Maria, como se tivesse perdido a própria irmã. Nunca tiveram filhos, mas com Rosa lhe azucrinando os ouvidos todos os dias, quem disse que precisaria de bebês chorando? E ele sempre sorria ao lembrar da esposa e amiga.

Já caminhavam em pouco mais de dois meses para o aniversário de casamento de dois anos de Domingos e Monique . No início do noivado, assim que foram apresentados, ela era como um lobo acuado e violento. Quase nunca se comunicava com o noivo em português, e ele tinha quase certeza que na maioria das vezes ela proferia insultos à sua carequissima pessoa. (Sim, o advogado era calvo).
Achava que Domingos à havia comprado em nome de uma sociedade com seu pai.
Uma semana antes do casamento, ele à levou para conhecer a casa em que viveriam. Para que, se desejasse, mudasse a decoração. Qual não foi a surpresa de Monique ao ser recebida por uma empregada negra. Não uma escrava, mas uma liberta assalariada.
Conversando com a moça (Sílvia, era seu nome) descobriu mais sobre o homem com quem era obrigada à se casar, e o que mais lhe interessou - sobre sua falecida esposa e o relacionamento dos dois. Depois daquele dia, passou à ser mais tolerante, e casou-se sem tentar um escândalo, mesmo estando longe de estar satisfeita.

Na noite de núpcias, Domingos à deixou no quarto de Rosa Maria. Deu boa noite e foi se retirar... Observando Domingos semana após semana. Mês após mês, percebeu que não precisava ser seu inimigo. E passou a conversar com ele em português.

Certa noite, desnorteado com um caso em particular, tomou os documentos e adentrou o quarto de Monique sem bater, como costumava fazer com a falecida Rosa Maria. A jovem trocava de roupa e ambos se assustaram com a situação. Monique pensou que o homem vinha reivindicar seus "direitos conjugais". Ela até pensou que estava demorando para que isso acontecesse. Mas não. Ao invés de desejo, encontrou nos olhos de Domingos decepção. Ela não era Rosa Maria.

Triste, ia saindo do quarto, murmurando um pedido de perdão, mas Monique o impediu. Pediu para ver os documentos que tinha nas mãos. Ele explicou que Rosa Maria lhe ajudava à resolver certas questões. Apesar de analfabeta, a falecida tinha uma memória notável quando viva, e lhe fazia relembrar detalhes de leis que ele mesmo esquecia.
Monique não era analfabeta, e embora entendesse pouco das leis brasileiras, estava disposta à ajudar. Eles passam a madrugada estudando o caso juntos. A primeira de muitas outras. Monique se afeiçoou ao homem, consciente de que seu casamento era uma grande excessão. E pensava em formas de lutar para que outras mulheres pudessem viver uma vida como a sua. Que a exceção, virasse regra.

Domingos ganhou uma nova ajudante, e quase um ano depois do casamento, uma amante. Ele sabia que Monique tinha paixões fora de sua casa. Mas isso não lhe incomodava, principalmente pela suspeita que ele tinha...

Estava satisfeito de ainda sentir um pouco de Rosa Maria em sua vida: a filha que Monique lhe dera ganhou o nome da falecida esposa. Uma homenagem que, aos olhos de Domingos, foi a maior demonstração de lealdade que poderia receber. Os afetos de Monique eram irrelevantes diante da amplitude de caráter e respeito que ela tinha. Ele sabia o que as pessoas falavam pelas costas, mas já não se importava. Se fosse feliz, se fizesse sua esposa feliz (a atual, e a que do céu o via) já estava satisfeito.

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Monique, já nas últimas semanas da gestação, preparou as cartas e convocações para a leitura do testamento de um dos maiores clientes do esposo. Eles haviam, finalmente, acabado de receber todas as confirmações. Logo os dois filhos mais novos, e a irmã se juntariam aos demais herdeiros que já aguardavam na fazenda do falecido.

Em uma semana, seria finalmente lido o testamento do pai de Antônio.

Domingos buscou as últimas malas de Monique e da filha (já com dois meses de idade). A esposa pegou a pasta de documentos, enquanto o bebê ia nos braços da babá. A mulher recusava-se à ficar em casa, definitivamente. Jamais aceitaria perder a grande oportunidade de viajar para o interior, conhecer um pouco mais do país, assistir a leitura do enorme e bizarro documento, e ver o circo pegando fogo logo depois!

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now