O Filho Caçula

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Luiz Felipe apertou o máximo que pode toda sua bagagem na mala emprestada. Estava arrependido de ter aberto a bagagem para passar uma única noite na pousada. Pensava que teria sido melhor colocar a mesma roupa depois de banhar-se.

Consultou o relógio e checou o bilhete do trem. Estava em tempo. Não poderia se atrasar ou perderia o primeiro trem da manhã.

Apressou-se em pagar a estadia e correu para a estação que não era distante da pousada em que se hospedara.

As ruas ainda não estavam completamente claras, mas o movimento das pessoas era grande. Boa parte se encaminhando para alguma fábrica ou outro posto de trabalho. Levantar antes do sol é um hábito para pessoas com pouco dinheiro. Ele aprendeu isso vivendo.

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Ainda não havia terminado a faculdade de medicina veterinária, infelizmente teve sérios problemas financeiros que quase o comprometeram, mas não desistiu. Somente precisava fazer as provas finais e finalmente seria um médico veterinário. No Brasil, suas possibilidades eram muitas dada a expansão das fazendas de gado leiteiro. Teria a possibilidade de trabalhar em algo que amava, mesmo não sendo o que a família esperava.

Queriam que ele seguisse os passos de sucesso dos irmãos: Antônio um administrador, Fortunato era advogado, e ele, o caçula, deveria ser médico. "Médico de verdade. Não um idiota que trata animais. Ninguém precisa de tantos anos numa faculdade para assistir uma vaca à fazer aquilo que a natureza lhe criou pronta para fazer sozinha!" Lembrava das palavras do irmão mais velho quando descobriram que não cursava a medicina tradicional. O pai nem mesmo quis vê-lo. Mandou cortar o pagamento da faculdade e a mesada que enviava todo semestre. Luiz Felipe imaginava que tal atitude seria possível, e desde cedo guardava dinheiro escondido. Tinha o suficiente para terminar a faculdade (já que os primeiros anos o pai havia pagado) e só precisaria apertar um pouco mais o já ajustado orçamento para se manter até terminar o curso. Faltava apenas um semestre quando o pai faleceu.

Quando recebeu a carta comunicando do falecimento e convocando para a leitura do testamento, planejou metodicamente os meses seguintes. Adiantou o máximo de trabalhos que pôde. Entregou estudos e dissertações. Completou a carga horária de estágio dobrando turnos, cobrindo colegas... Conversou com todos os professores e deu sorte: Ganhou algumas semanas para ir até a fazenda da família e cumprir seu dever de filho. Voltaria à Argentina a tempo das provas finais.

Claro que sua dedicação e boletim impecável colaboraram muito para receber a permissão especial. Porém, o que realmente crescia os olhos da reitoria era a possibilidade de uma gorda doação à instituição de ensino, pois criam que o jovem herdaria boa parte do capital da família. Eles não sabiam que praticamente tudo que já havia sido do pai de Luiz Felipe provavelmente seria tomado pelo banco e pelos agiotas. Mas essa ignorância agiu em favor do futuro veterinário.

Depois preocuparia-se com as espectativas não atendidas da reitoria. Ele só queria resolver suas questões familiares e terminar sua faculdade. Talvez, conseguir alguma indicação para depois de formado. Mas não se iluda muito sobre aquilo.

Estava ciente que, com a perda dos bens da família, só lhe restaria o pouco prestígio associado ao sobrenome, talvez o suficiente para conseguir um empréstimo e iniciar sua nova vida.

Porém, tratava apenas de concentrar suas energias para o clima certamente hostil que o aguardava na (ainda) fazenda da família.

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Distraído, só se deu conta de onde estava ao ouvir o apito do trem. Tendo apenas uma mala, não precisou despachar bagagem no vagão específico.

Sentou-se na classe econômica, já lamentando a dor nas costas que teria ao passar praticamente o dia inteiro viajando. Esperava que ao menos o irmão tivesse preparado o quarto para recebê-lo.

Também imaginava se Fortunato já havia chegado, ou a tia Isabel, irmã mais nova de seu pai. Perguntava-se como estaria a sobrinha Ana Lua, não a via desde que tinha 4 anos. Na época, ele mesmo tinha somente 12. Foi a segunda e última vez que encontrou a menina, já que Antônio fazia tanta questão de mantê-la longe a maior parte do tempo possível.
O que não era muito diferente do que o próprio pai fez com ele e seus irmãos.

Todos estudaram em colégios internos e estudaram em faculdades em países estrangeiros.

Luis Felipe foi o único que abriu mão de ir para a Europa para estudar na Argentina. A família estranhou, mas não quiseram se meter, até porquê Fortunato já havia quebrado a tradição familiar de estudar em Portugal para ir fazer Direito na França. Mas descobrirem qual realmente era o curso que Luiz Felipe estudava tinha sido outra coisa...

Ele observou enquanto o trem enchia, e depois fechou os olhos ao sentir ele se mover. Era algo que fazia quando criança, ao visitar a casa dos pais.
Após um profundo suspiro, passou a observar pela janela a cidade que ficaria para trás. Logo sua visão se resumiria à morros cobertos pela vegetação, e uma ou outra fazenda ao longo do caminho. Pegou o bloco de papel e o lápis que carregava no bolso, estaria pronto para fazer anotações para posteriormente desenhar os pássaros que visse pela pequena janela. A viagem seria longa, mas não seria um completo tempo perdido.

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now