Jantar no Quarto

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Depois de algumas horas tentando digerir o que havia acontecido na sala de visitas de manhã, Ana Lua continuava sentada na poltrona de estampas florais de seu quarto. Do livro aberto sobre seu colo, não tinha sido lido nem mesmo uma linha. Ela se perguntava se havia feito algo errado.
Maria Cecília a consolou como pode, até a atrevida Tininha demonstrou solidariedade ao distribuir insultos sobre a tal companhia de Antônio. (Por mais que Ana tentasse evitar o sentimento, sentindo que não era adequado a uma dama, mas ela sabia que havia lhe feito bem que a jovem cozinheira externasse todos os adjetivos que a timidez e o decoro de Ana lhe impedia de dizer em voz alta).
Parte de Ana queria procurar o pai e cobrar-lhe explicações e desculpas. Ela acabara de voltar depois de mais de 20 anos de negligência da parte dele. E no mínimo esperava ser posta em consideração acima de uma puta qualquer... (Ana havia ficado chocada ao descobrir que "puta" era uma mulher que recebia dinheiro em troca de favores sexuais. Na sua inocência - e sem ninguém para explicar-lhe - achava apenas que era uma mulher que se vestia de forma sedutora e despudorada. Uma das muitas descobertas sobre a vida fora dos muros do colégio que só foi aprender quando fez amizade com Priscila).

Outra parte de si desejava profundamente que o advogado da família não se demorasse muito. Que tudo fosse logo resolvido e ela pudesse ir embora daquele maldito lugar. Dessa vez, para sempre.

Perdida em seus muitos pensamentos, só quando seu estômago reclamou de fome ela percebeu que estava escurecendo... Assustada, levantou correndo e já se encaminhava para o corredor : precisava ver se havia ainda alguma coisa para jantar e trazer algumas velas para seu quarto. Ao abrir a porta, quase tromba com Josué, que segurava uma bandeja com um prato, um copo com um líquido escuro e um castiçal com três velas acesas.

"Opa!" Diz o rapaz surpreso. "Foi quase." Comenta sorrindo.

"O quê você está fazendo aqui dentro? Não deveria estar lá fora?" Pergunta a jovem, com legítima curiosidade na voz. Geralmente os homens trabalham do lado de fora da casa, exceto raras exceções, como um mordomo, ou trabalhos esporádicos como de marceneiro ou pintor.

"Vim trazer a janta da senhorita" diz com um sorriso reluzente, mesmo à luz de velas.

"Acho que é meio óbvia essa parte" responde Ana Lua, enquanto aponta a bandeja nas mãos de Josué e abre caminho para o quarto. "Refiro-me ao fato de que quase sempre vejo você dentro de casa. Bom, sei que tem menos de 24h que estou aqui, mas já é uma frequência maior que o habitual de ver um peão na casa dos patrões." Completou enquanto gesticulava para que o rapaz entrasse no quarto e deixasse a refeição no criado mudo.

"Bom, não há muito o que fazer lá fora... A fazenda está parada desde que o antigo patrão faleceu. Posso estar me metendo no que não é da minha conta, mas acho que o patrão Antônio não quer mexer na fazenda até ter certeza que o banco não vai tomar." Explica o rapaz, dando de ombros.

"Não está se metendo... Percebi que a maioria dos funcionários não está mais aqui. Quando eu era criança esse lugar parecia ferver de empregados e escravos, e agora está quase morto. Não há movimento. Não há vozes. Não há vida... Até os que ainda estão aqui comportam-se de maneira estranhamente silenciosa. E eu duvido que seja luto." Só terminar de falar, encara o rapaz que a olhava atento, mas sua reação é só dar de ombros mais uma vez.

"Vou deixar a senhorita comer em paz. Deseja mais alguma coisa?"

"Você já jantou?" Pergunta Ana, deixando o rapaz com uma expressão curiosa.

"Já sim. Tininha sempre faz questão que eu coma bem, já que eu a ajudo na cozinha. Porquê a pergunta, senhorita. Se me permite essa dúvida..."

"Ah, estou cansada de ficar sozinha. Fiquei o dia todo apenas com meus fantasmas. Gostaria de ter companhia para comer."
"Fantasmas?" Questiona Josué, inquieto e desconfiado, olhando os cantos das paredes e o teto do quarto que com o declínio da luz natural, projetava cada vez mais sombras nas paredes.

Ana achou graça daquilo e soltou uma risada contida que se converteu num sorriso aberto. O moço olhou deslumbrado aquele sorriso, o primeiro que viu a jovem dar, e sorriu de volta.

"Fantasmas é uma expressão. Significa pensamentos perturbadores. Problemas! Fiquei pensando nos meus problemas." Disse enquanto sentava na cama e apontava uma cadeira. Prontamente Josué a buscou e sentou-se à uma distância respeitável, mantendo a porta aberta.

"Ah bem. Problemas temos muitos mesmo. Mas eu duvido que a senhorita tenha tantos assim." Pensou por um breve momento e completou "Bom... Talvez tenha alguns..." E lhe sorriu tristemente.

"Você é um homem interessante, Josué. Me pergunto o que meu pai viu em você para contrata-lo. Você não é o perfil de empregado que ele seleciona rua." Disse enquanto dava preparava a primeira garfada da refeição.

"Ah não. Mas não foi patrão Antônio que me contratou. Foi o pai dele que me trouxe da minha aldeia."

"Aldeia?" Perguntou Ana, intrigada com o rumo da conversa.

"Sim senhora. Sou Tupi. Bom, sou meio Tupi Guarani, meio branco. Cabloco, sabe? E foi seu avô que mandou me trazer da aldeia algumas semanas antes de morrer."

Ana Lua não sabia o que pensar... Porquê o avô, já em seu leito de morte, mandou trazer um índio para casa? E porque o pai não o havia dispensado na primeira oportunidade? Se tratando de um mestiço, havia a possibilidade de serem parentes? A história estava cada vez mais esquisita.

"Me conta sua história, Josué? Agora fiquei muito curiosa."

"Claro senhorita. Não tem problema. Mas é uma história bastante longa, não vai atrapalhar sua refeição?

"De maneira alguma. Por favor... Será um prazer ouvir sua história."

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now