Uma Doce Vizinhança

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Quarenta minutos de cavalgada e já chegava ao entreposto. Alguns chamavam de centro comercial, mas somente os de "moral duvidosa". Quem honrado atribuiria tal prestígio à um lugar que juntava apenas quatro estabelecimentos: uma mercearia e bar, um prostíbulo, um ferreiro e uma cigana/curandeira ?!?
Porém, Ana Terra era uma amazona e solteirona (pois já passara dos 20 anos sem aceitar qualquer pretendente) e vivia falada por ser independente, rude e de poucas palavras, então ela se reservava o direito de se referir à qualquer um e qualquer lugar como lhe parecesse mais coerente. E para ela um centro comercial não carece de um tipo específico de comércio. Somente que comercialize algo.

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"Notre Dame Mercearia e Bar" dizia a primeira placa, em grandes letras vermelhas. Via-se de longe a varanda da construção de madeira. Era evitada por qualquer católico apostólico romano por "profanar um nome santo", mas o padre da cidade desmistificava essa crença baseado na idéia de que era uma "homenagem", lembrando que, assim como na Igreja, todos eram bem-vindos naquele estabelecimento... (Isso, e as ofertas generosas em forma de vinho e outras bebidas que recebia diretamente do dono do Bar, Euzébio).

"A Glamourosa - Pousada" era uma "instituição de renovo masculino, pensada para o prazer e descanso do homem trabalhador". Tradução: putas para quem tem como pagar. A única construção de dois andares da localidade. Nem mesmo as fazendas tinham a pompa de uma sacada com cadeiras de balanço como "A Glamourosa" tinha. A administradora era conhecida  como Consuelo, mas ninguém sabia de fato à quem pertencia o lugar.

Depois, havia uma espécie de celeiro. "Ferreiro" escrito na parede ao lado da porta, bem objetivo. "Temos ferraduras e celas pronta entrega. Aceitamos encomendas". Nicholas era o dono do lugar. Um homem idoso e quase cego. Benjamin e José eram os ferreiros. Nasceram numa noite quente apenas dois dias antes da lei do ventre livre. A mãe morreu no parto difícil dos gêmeos. O pai vítima de assassinato alguns anos depois, levou consigo o único filho de Nicholas. Um jovem grosseiro e cruel que não fez falta nenhuma ao pai. O idoso que já era viúvo, achava que estaria só, mas os rapazes o surpreenderam ao, não apenas assumirem a oficina, mas cuidarem de sua casa e saúde. Em retribuição, deu-lhes a alforria tão merecida e em segredo, suas posses em testamento. Não era de surpreender que a vizinhança só os procurassem por extrema necessidade. Eram os únicos com quem Ana Terra ainda tinha alguma conversa amigável.

Por último, o casebre onde Rose atendia. Uma espécie de loja de ervas e chás. Mas também oferecia leitura de tarô cigano. Ela entendia bem de medicina natural, com um tratamento eficiente para quase tudo. Mas não era bem o mesmo com o tarô. Por sorte, tinha acesso à melhor rede de informações pertinentes de uma vizinhança: informantes de fofoca. Ela tinha informantes em todas as estâncias, fazendas e estabelecimentos, do campo à cidade, é até na capital. Tinha outros negócios dia quais Ana tinha conhecimento da existência mas não da espécie. Também não fazia questão de saber. Fazia-se de tudo para sobreviver.

Esse era o belíssimo centro comercial que Ana frequentava. Onde poderia se encontrar de (quase) tudo que precisasse.

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Desceu do cavalo e o amarrou junto à modesta casa de atendimento de Rose. Atravessou o descampado voltando até "Notre Dame". À trinta metros da edificação já ouvia as vozes bêbadas dos homens os mesmos homens que passariam a noite n'A Glamourosa, chegariam de madrugada em casa, bateriam em suas esposas e filhos, no dia seguinte fraudariam seus patrões e clientes, maltratariam seus animais... mas no domingo, estariam de pé antes do sol nascer arrastando toda sua família para a igreja da cidade mais próxima para confessarem seus pecados e retornar "puros" para suas rotinas de violências, egoísmo e libertinagem.

Mais do mesmo de todo bom homem cristão.

Ana respirou fundo antes de adentrar o local. Eram apenas algumas cenouras e iria embora. Apertou o chapéu na cabeça e atravessou a estreita varanda, atravessou o local sob o olhar dos presentes até o balcão. Maneco, o baixinho filho do dono, cuja mãe era portuguesa, a atendeu. Arrumou rapidamente o pedido e entregou numa bolsa de lona à cliente antes que algum bêbado presente fizesse gracinhas... Infelizmente, não foi rápido o suficiente.

A Domadora de CavalosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora