Pequenos Dias Difíceis

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Ela acordou num susto. Ouvira gritos e o barulho de passos pesados pelo corredor. Temeu que o movimento na casa aquela hora da noite fosse por sua causa.

Ana Lua sentou na beirada da cama, sentiu o chão frio de pedras de ardósia do dormitório e alisou os longos e loiros cabelos (que já haviam sido mais claros quando criança).

Só então se lembrou que não estava em casa. Ainda não. Esses sonhos tão realistas a estavam incomodando à semanas. Desde que recebera a carta do advogado da família. O avô paterno havia falecido e ela era chamada para voltar à fazenda da família e acompanhar o processo legal de partilha com a leitura do testamento.

Mas ela sabia que era mais que isso. A família estava atolada em dúvidas. Com o falecimento do avô, o banco ficaria com a maior parte dos bens. E como em poucas semanas completaria 21 anos, já seria maior de idade, e a escola teria cumprido seu papel. Não teria mais velho vínculo nenhum com ela.

14 anos. Foi o tempo que ela passou dentro daqueles muros. Antes disso, havia passado a maior parte da infância com uma babá, morando em um apartamento minúsculo na capital do estado.

Nunca passou necessidade, mas também não tinha liberdade. Nao tinha contato com outras crianças pois não ia à escola. As aulas eram em casa com um tutor particular. As únicas vezes que saía para a rua eram aos domingos para a missa, ou às quartas de manhã, para fazer compras.

Ela odiava a vida que tinha. Mas se soubesse que a maldita visita que tanto implorou para fazer ao pai a levaria até aquele colégio interno, onde ficou presa por QUATORZE ANOS, jamais teria peço.

.........….......

Ela tinha só seis anos, desejou ver o pai como presente de aniversário de sete anos. Pediu e implorou por meses, até que a babá cedesse. No dia em questão, colocou o melhor vestido. Um verde claro com bordados de flores na barra que ela mesma havia feito. Eram margaridas, lindas e delicadas flores brancas e amarelas que combinavam perfeitamente com seus delicados cachos dourados.

Pele branca e cabelos claros como a mãe, mas olhos castanhos como o pai.

Elas saíram de madrugada. A ama nem precisou chamá - la. Foram de carro de aluguel e antes do meio dia já estavam na fazenda.

Ela esperou, esperou, esperou... Ana Lua se negou à subir para um quarto. Sentada numa cadeira na sala de visitas, esperava a chegada do pai. Ele a abraçaria. Diria que a amava, e que não queria que ela fosse mais embora. Que aquela casa era seu lar. Onde seu pai estava...

A noite chegou, então a madrugada.

Ela adormeceu na cadeia. Quase de manhã, ouviu gritos de homens e barulho de passos. Levantou e foi lentamente pelo corredor até o hall de entrada. Viu o pai, com o nariz sangrando e claramente alcoolizado sendo sustentado por dois funcionários da fazenda, enquanto o avô gritava e humilhava ele.

Ana sentiu muita raiva. Aquele velho estava batendo em seu pai. Ela tomou coragem e entrou na cena. Empurrou o avô e disse que ficasse longe do pai dela.
O susto de ambos foi evidente. Mas o velho não deixou por menos. A agarrou pelos cabelos e enquanto quase a suspendia do chão, chamava as empregadas.

Ana Lua implorou para que a soltasse. Entre lágrimas, olhou o pai,e suplicou sua ajuda. Ele foi colocado numa cadeira e pediu uma dose de wisk à um dos funcionários.

Quando finalmente uma das empregadas chegou, o velho fazendeiro à soltou. Mandou que a tirassem dali, e que nunca mais a "filha do demônio" voltasse à sua presença.

Ela foi arrastada para longe dos homens. Enquanto gritava pelo pai, Antônio bebia mais uma dose de bebida.

Foi a última vez que viu o avô. A penúltima que viu o pai.

Dez anos depois disso, quando sua ama morreu (a única pessoa que fazia ponte entre Ana e sua família, e a única que simbolizava algum afeto para Ana Lua) Antônio compareceu à escola acompanhado do advogado da família. Entregaram uma série de documentos à diretora do colégio que ficou imensamente feliz em deixar registrado mais quatro anos completamente quitados para os estudos de Ana Lua.

Ana só viu o pai de relance. Já dentro do carro, indo embora e deixando-a cativa e sozinha novamente.

...............

Ela estava perto de ver seus pesadelos se tornarem realidade. Faltavam seus dias, e ela retornaria a casa que matou sua mãe, que matou seus sonhos infantis, e que provavelmente à mataria também. Ana Lua só rezava para essa morte fosse rápida e indolor.

Com essa minúscula esperança (se é possível chamar assim) deitou na cama e voltou à dormir.

A Domadora de CavalosWhere stories live. Discover now