CAPÍTULO 21

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Querido Diário,

Depois de um bom tempo estirado na minha cama, encarando o teto como se ele pudesse desabar sobre mim a qualquer momento, parece que eu finalmente tomei coragem de pegar no lápis... e aqui estou, mais uma vez, deixando que ele me guie enquanto escrevo essas palavras.

Agora mesmo eu consigo ver minha vida passando como um filme, ou como um montão deles, cenas soltas que não fazem muito sentido mas, ao mesmo tempo, parecem querer dizer alguma coisa... Cenas da minha infância, que eu já nem lembrava, mesmo que não faça tanto tempo assim. Apesar disso, é como se tudo fosse em outro mundo, um jardim secreto que existe dentro de mim e onde ninguém mais pode entrar.

Eu lembro da chuva. Das tempestades que caíam à noite, com seus raios e trovões, enquanto eu chorava baixinho no colo da minha mãe... Meu pai, que ainda estava com a gente, parecia se encolher diante das minhas lágrimas do mesmo jeito que eu, debaixo dos rugidos que estremeciam a casa. Eu sempre achava que o mundo ia se acabar, enquanto o papai apenas olhava com calma para a janela e repetia: "fique calmo, filho, que essa chuva passa... pode até demorar, mas passa". Depois, quando o céu chorava tudo o que tinha pra chorar, a chuva passava. O sol sorria. Mas o mundo já não parecia a mesma coisa...

Com o tempo fui aprendendo a lição: por pior que seja, a chuva sempre passa... mas também sei que até a mais fina garoa, quando acaba, deixa as suas marcas. Agora parece que o tempo fechou de vez pra mim. É uma tempestade após a outra, mal o céu se abre e lá vem mais um pé d'água inundar minha vida!

Neste exato momento eu devia estar no colégio, mas me sinto horrível demais pra levantar da cama... Dei pra começar a suar por todos os lados, sem contar a tremedeira esquisita e a fraqueza que quase me faz desistir de escrever. Mamãe arrumou logo um termômetro e confirmou que é febre. Além disso, já avisou que me leva pro médico se o chazinho que ela está preparando não fizer efeito.

Mas, para falar a verdade, acho que um resfriado agora não faria tão mal assim... Pode até durar uma semana inteira que eu não ligo. Eu sei que não devia falar esse tipo de coisa, mas o fato é que eu preferia passar um tempinho doente, sendo paparicado no calor da minha casa, a ter que dar as caras no colégio. Nem quero imaginar o que a galera tá comentando pelos corredores, afinal, assunto não falta depois do mico (mico não, King Kong!) que eu passei no fim de semana.

A história é longa, Diário, e vai ter que ficar pra outra hora. Agora, eu tenho uma bomba muito mais bombástica pra contar. Vai se preparando, pois só de pensar no assunto a minha tremedeira ameaça virar um liquidificador! Fiquei sabendo no almoço de domingo, quando os dois entraram na sala de jantar de mãos dadas e o queixo de todo mundo, principalmente o meu, foi parar no chão...

Quer saber de quem eu tô falando? Ninguém menos que Dona Selma, minha mãe. E o Fausto, pai da mala-sem-alça da Lívia. Os dois. JUNTOS! "Namorando", segundo eles... Tá bom pra você ou quer mais? Olha, se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais acreditaria. Uma parte de mim torce pra que eles estejam brincando, porque sei que não vou conseguir me acostumar com a ideia. Muito menos agora, que a minha vida anda de pernas pro ar e eu não faço ideia de como colocar as coisas no lugar!

Acho que vou ficando por aqui. Não dá mais pra escrever com estas mãos trêmulas. Depois que a minha mãe subir com o chá, vou tirar um cochilo de Bela Adormecida e, quando acordar, talvez tudo isso não passe de um delírio causado pela febre...

Do Fundo do Meu Coração - Dramas e Confidências de um Garoto ApaixonadoWhere stories live. Discover now