CAPÍTULO 2

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Ó Diário...

Tá, eu sei que não é a melhor saudação. Em todo caso, ainda é melhor que "meu Diário"... Mais emotiva, pelo menos. Afinal, não existe amizade quando um dos dois não se sente importante... "Ó Diário" é quase um "querido Diário", só que como uma ópera... Uma ode em forma de vogal. Convenhamos, mais respeitoso que isso, impossível!

Aliás, se vamos mesmo ser amigos, precisamos nos conhecer melhor... E já vou logo adiantando que não é tarefa fácil. Não quando se trata de Breno Souza. Na boa, sem falsa modéstia, eu posso ser o melhor amigo do mundo... mas demando paciência em tempo integral. Não sou do tipo que agrada a gregos e troianos.

Nasci numa cidade da qual você provavelmente jamais ouviu falar... Passaredo. Interior do Paraná. Beeeeeeeeeeeeeeeeem interior. Irritantemente interior, a um quilômetro e meio do Fim do Mundo. Talvez você possa encontrá-la no Google Maps... ou não.

Como já deve ter suposto, sim, também moro em Passaredo. Essa informação é relevante, uma vez que a cidade geralmente não é tida como um destino almejado por aqueles que aqui vivem, mas como um ponto de partida. Como uma cidade-beta. Os passarenses que tem algum objetivo decente geralmente migram para a cidade vizinha, ou, com sorte, arranjam-se na capital...

Meu endereço é bastante peculiar. Não se trata de nenhum Sítio do Picapau Amarelo ou Castelo Rá-Tim-Bum - afinal de contas, nada na vida real é perfeito - mas, sem dúvidas, tem lá sua magia. A Vila Malta foi construída em alguma data nebulosa de mil-novescentos-e-guaraná-com-rolha, nas terras do fazendeiro Jerônimo Malta - que, montado na grana, decidiu reunir a família toda no mesmo terreno.

Apesar da importância histórica, a Vila Malta é hoje apenas um conhecido pedaço do subúrbio passarense. O casarão principal, ocupado pelo próprio Jerônimo Malta, foi se desfigurando ao longo das décadas até resultar na Pensão da Dona Selma. Não, Diário, de forma alguma eu quis depreciar a pensão - longe disso! -, mas... Ora, você tem de concordar que poucas coisas aqui fazem jus à imponente construção do século XX.

Do lado oposto do pátio ficam as casas mais "bonitinhas". Bom, pelo menos elas preservam o encanto das construções originais... Pena que não se possa dizer o mesmo dos moradores. Na casa menor vive a família de Marcos, um garoto da minha idade. (É triste perceber que essa é a melhor definição que posso dar a ele, depois de tantos anos... )

Quando crianças, a gente costumava ser unha e carne. Sem exageros. Saíamos juntos com nossas bicicletas, sem hora para voltar, dormíamos um na casa do outro, era uma travessura atrás da outra... Resumindo: uma amizade cinematográfica. Não conseguíamos imaginar como seria viver um sem o outro. Porém, o tempo fez o seu trabalho e nos mostrou esse outro lado da vida, aquele que anestesia relações e cria barreiras invisíveis.

A gente se vê quase que diariamente, embora hoje as sensações - pelo menos para mim - sejam bem diferentes... é um misto esquisito de indiferença e nostalgia. O engraçado é que só agora, colocando essas palavras no papel, elas parecem fazer sentido.

Agora que resolvi apresentar minha vizinhança, ó Diário, seria um erro deixar de mencionar Marisa Coutinho. Não que ela mereça seu nome nestas páginas, mas é justamente para que possamos nos prevenir. Pelo teor dos meus comentários, você já deve ter percebido que ela não é lá flor que se cheire, não é?

Falando sério... se por acaso um volume encantado dos irmãos Grimm, dando sopa em algum lugar do mundo, trouxesse à vida alguma das bruxas mais horrendas e desprezíveis dos contos de fadas, ela com certeza viveria na Vila Malta, protegida pela fortaleza de avencas e samambaias da varanda. Não lançaria feitiços, mas frequentaria a igreja todos os dias, como se assim pudesse disfarçar o fato de ser uma megera indomada.

Marisa "Bruxa Velha" Coutinho é uma viúva amarga cuja vida divide-se entre novenas, chás das cinco com as senhorinhas da paróquia e irritantes olhares atravessados com os quais (des)trata a maioria dos vizinhos. Seu único sustento provém de uma mesada enviada pelo filho, Paulo, que teve a sorte de conseguir um bom emprego longe daqui.

Enfim, teremos muito tempo para a minha entediante teia de relacionamentos. No momento, tenho um tópico mais interessante a tratar... e não, de jeito nenhum, posso deixá-lo para depois!

Ok, talvez eu esteja me empolgando além do necessário... mas é assim mesmo, caneta na minha mão vira metralhadora. O fato é que esta semana começou de um jeito diferente... nem melhor, nem pior, mas com um gostinho de novidade.

Não poderia haver melhor deixa para inserir um novo cenário nesta história: o colégio. Tá, talvez eu já tenha mencionado o dito-cujo, e não há nada de especial a comentar sobre ele. Quer dizer, é um colégio. Salas, corredores, pátio, refeitório... Apesar de ser considerado o melhor da região (um título duvidoso, se quer saber), não é tão diferente dos outros.

Enfim, Diário, você já deve ter notado a minha facilidade em viajar na maionese. Juro que não faço de propósito. Vamos logo ao que interessa!

Digamos que, não fosse o "favor" ingrato que devo a Ruan ou a certeza de reencontrar as fuças de Renata e Isabel, eu estaria esperando pelo dia de amanhã com certa ansiedade. É que, veja bem, pela primeira vez em algum tempo tenho um motivo digno para ir ao colégio sem precisar recitar um mantra motivacional.

Afinal de contas, não é todo dia que um garoto exótico e misterioso surge na minha sala de aula, sacudindo a mesmice e mostrando-se um amigo em potencial, não é? Não, ele não faz a linha Edward Cullen nem sofre de algum transtorno psiquiátrico visível... mas é diferente, assim mesmo. Daquele tipo de pessoa que você só conhece uma vez na vida, sabe? Ou nos filmes...

O fato de vir diretamente de Nápoles é só mais um dos charmes de Luigi Palacci, meu novo vizinho de carteira. Com seu português perfeito, o cara me contou sobre a ascendência brasileira e todo o turbilhão emocional que envolve sua condição de imigrante. Bom, como a nova sensação do colégio, duvido muito que ele tenha dificuldades em fazer amigos. Eu mesmo, em outro contexto, poderia odiá-lo pela popularidade instantânea.

Se até então minha imagem da Itália era um improvável jantar romântico entre Laura Pausini e Andrea Bocelli - regado a vinho e pizza, com a Torre de Pisa despontando ao fundo -, tenho certeza de que tenho muito a aprender...

De qualquer forma, a terra das vinícolas nunca me pareceu tão interessante.  

Do Fundo do Meu Coração - Dramas e Confidências de um Garoto ApaixonadoWhere stories live. Discover now