Fui perguntando quem era quem, pois até então eu as reconhecia somente pela voz. Assim, conheci Aurora, Lilly, Maria e Denise. Conheci também um senhor que nós o chamávamos de Zé das Medalhas. Ele era um senhor de seus oitenta e poucos anos, que trabalhava como voluntário no hospital levando as fichas da recepção até os consultórios dos médicos. Ele usava um avental branco, com o bolso cheio de condecorações e patentes militares.
Dr. Blumenkranz quis saber como eu estava me sentindo e eu disse que mais feliz seria impossível, e tudo graças a ele. Mais uma vez ele agradeceu e disse que parte daquilo tudo era mérito meu também.
Mais uma vez, chamou mais médicos para me examinarem. O Bascom Palmer faz parte da Universidade de Miami e além de ser um hospital-escola, é um dos mais importantes centros de pesquisas oftalmológicas do mundo. Além dos exames, ele mostrava as fotos do antes e depois e falava da técnica usada por ele na cirurgia.
Percebia que de certa forma, eu era um troféu que ele tinha conquistado quando ninguém acreditava nessa possibilidade; em contrapartida ele representava para mim a figura de um semi-Deus.
Voltamos para a Casa, que, para a nossa surpresa, estava cercada por vários carros de polícia. Quando tentamos entrar, os policiais nos perguntaram se éramos hospedes e depois da confirmação nos liberaram. Lá dentro ficamos sabendo da terrível tragédia ocorrida em San Ysidro na Califórnia, onde um cara havia entrado em um restaurante McDonald's e disparando com um rifle matando vinte e uma pessoas. Perguntamos o porquê da presença da polícia na casa, e Maria Antonieta nos disse que era um procedimento padrão naqueles casos, até que o FBI apurasse as causas do atentado na Califórnia.
Quase todos os hóspedes estavam em frente aos televisores. Aquela notícia havia corrido e chocado o mundo todo. Depois do susto, fui muito cumprimentado por estar enxergando com os óculos.
Foi então que começou outra situação engraçada. A maioria das descrições que minha mãe e minha irmã fizeram das pessoas que havíamos conhecido, não batia com a imagem que eu havia criado no meu cérebro.
Eu tirei muito sarro das duas, dizendo:
-Como é que vocês me falaram que tal pessoa era assim, assim e assado? Olha lá. Não tem nada a ver. Se vocês tiverem que fazer um retrato falado de um bandido, a polícia não ia achar o cara nunca.
Algumas pessoas já haviam retornado para seus países e jamais voltei a vê-los. Mas ainda tive a oportunidade de conhecer os Tealdo, os Muñudos, os argentinos, os Cabrera e, é claro, os Marcillo.
Pedi umas moedas para a Angélica e perguntei como se tirava refrigerante da máquina. Aquela era mais uma novidade que só conhecíamos dos filmes. Ela me deu algumas moedas e disse que usasse só dez cents. Fui até a máquina, coloquei a moedinha e apertei o botão onde estava a coca-cola. Peguei a lata, fui até o elevador e desci. Passei na frente do escritório, e abri a porta que dava para o hall de saída. À minha esquerda a escada, e à direita a porta principal. Até ali eu estava um tanto inseguro, meu coração estava mais acelerado do que o normal. Quando eu pus a mão e empurrei a porta de vidro e percebi que eu estava ali, livre e por minha própria conta, me senti de volta à vida.
Fui andando pela calçada que circundava a Ronald McDonald's House, passei pela placa que a identificava. Fiquei parado à sua frente, li cada letra, cada palavra. Abri a coca-cola dei um gole grande, minha boca se encheu de gás. Enquanto isso, olhei o caminho por onde eu queria ir. Precisava ter certeza de que podia me afastar. Minha visão não encontrou obstáculos, a calçada era perfeita, toda cimentada, sem degraus e sem buracos. Era só andar, mas era um desafio. Senti-me como um pássaro que daria o seu primeiro vôo, do ninho para o mundo. Respirei fundo e fui, caminhando e bebendo, bebendo e caminhando. Olhava tudo ao meu redor, andava devagar quase que em slow-motion. Cada gole e cada passo eram cuidadosamente pensados. Aquela coca era a minha companheira naquele reencontro e eu não queria que ela acabasse.
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Fidel com a dele e eu com a minha.
Non-FictionUma Historia Real, passada nos anos 1980. Imagine, perder a visão aos 22 anos e ficar condenado a cegueira eterna. O que você faria? No cenário, as lindas praias de Guarujá e Miami, apimentadas com um pouquinho de Guerra Fria. Um jovem estudante de...
A RONALD McDONALD's HOUSE
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