Na manhã seguinte, 10 de maio, rumamos para o Hospital Santa Helena, onde o Dr. Suzuki realizava suas cirurgias. Não dava para deixar de comparar os Hospitais Einstein e Santa Helena. A diferença era facilmente percebida. Na época o Einstein era o que havia de mais avançado no país. Por sua vez, o Santa Helena, apesar de ser um hospital grande, era produto dos anos cinquenta, sessenta. Mas, o que importava de fato era a mão do médico; a mão dele é que tinha o poder de mudar o rumo da minha vida.
Desta vez, estavam no hospital durante a cirurgia, meus pais e meus irmãos. Novamente enquanto eu era operado, eles foram para a capela do hospital, rezar para Santa Luzia. Após quatro horas na mesa de operação, o médico se reuniu com eles e explicou que tinha recolocado a retina em seu lugar e que havia colocado o gás para que o mesmo "inflasse" o olho, de forma que a retina ficasse impedida de descolar. Explicou que esse gás sairia naturalmente sem a necessidade de nova cirurgia e que eu tinha que manter a cabeça imóvel e deitado o tempo todo enquanto o gás permanecesse dentro do olho.
Foram dez dias de internação, deitado com a cabeça inclinada para a esquerda.
Ao voltar da anestesia, eu estava grogue e extremamente enjoado. Acabei por vomitar várias vezes e isso não era nada bom. Ao vomitar, eu forçava muito a cabeça e a musculatura do pescoço. Tive muito medo.
O tempo não passava, as horas pareciam sofrer de dilatação. As noites eram intermináveis, o corpo e a mente estavam em frangalhos.
Nesses dias, foram várias as visitas que foram me levar um alento, oferecer alguma ajuda, ou até mesmo revezar com minha mãe e irmã na tarefa de fazer-me companhia.
Com o olho ainda muito inchado, sensível e com o tampão protetor, eu quase não tinha percepção de luz. Quando as enfermeiras vinham para pingar colírio, com muito sofrimento eu abria o olho, percebia alguma luz, mas nenhuma imagem. Essa agonia de não estar enxergando, foi dia a dia me consumindo. Enquanto isso, tios, tias, primos, primas, outros parentes e amigos iam passando por lá para visitar-me.
Um dia, talvez no quinto ou sexto dia, alguém bateu na porta e chamou por minha irmã. Minutos depois ela veio me perguntar se eu permitiria a entrada de pessoas que visitavam os doentes para rezar, ou melhor, orar por eles, já que eram evangélicos.
Pensei um pouco, pois não acreditava em religião nenhuma, mesmo tendo sido um católico praticante até os quinze, dezesseis anos. A partir de então, passei a ter muitas reservas quanto às religiões. Mas, ali, naquela hora, não vi nada de mais em permitir a entrada deles. Se não fizesse bem, mal também não faria. Mas avisei minha irmã que não queria ser convertido ou ter que ficar representando nada. Se eles quisessem orar que o fizessem, mas que soubessem que eu não era religioso. E assim foi feito: três pessoas entraram no quarto e fizeram as orações. Recomendaram que tivéssemos fé em Jesus e coisa e tal. Agradecemos e eles saíram.
Isso veio a se repetir com o Padre que ficava de plantão na capela do hospital e também com pessoas da igreja Messiânica, a pedido da minha prima Valquiria. Essa prima morava em São Paulo, e os messiânicos foram me visitar por duas vezes para fazerem uma aplicação de Johrei, que, segundo eles, ajudaria meu corpo a ganhar e ativar boas energias, para que meus órgãos trabalhassem melhor.
Como estava para ter alta do Hospital, pedi a meus pais que não retornasse ao apartamento das minhas tias. Não era por elas, mas pelo barulho e o desconforto que ele me causava. Eles conseguiram alugar um apartamento próximo à Bela Vista, que pertencia a uma família do Guarujá.
Nos instalamos no pequeno apartamento, eu ainda estava sem enxergar, pois usava um tampão e gaze cobrindo toda a área do olho. Teria que ficar ali até o dia do exame, dali a uma semana.
Nessa semana, a minha mãe era a minha única companhia durante a maior parte do tempo. Meu pai ainda era zelador e meus irmãos trabalhavam e não podiam ficar tanto tempo ausentes. Minha mãe era proprietária de uma boutique no centrinho do Guarujá e na ausência dela, minhas irmãs, tias e primas ajudavam a manter a loja funcionando. Ela ficava comigo e fazia tudo, cozinhava, lavava, saía para ir até a padaria e comprar as coisas para as refeições.
Durante algumas dessas saídas, eu ficava sozinho e comecei a escutar ruídos estranhos, e isso começou a me intrigar. Falava com minha mãe sobre esses barulhinhos e ela dizia que deviam ser da janela, ou a madeira estalando e desconversava.
Os dias foram passando e eu ficava cada vez mais intrigado com aquilo e comecei a pressionar minha mãe e minha irmã, que tinha vindo para me levar ao médico. Foi então que elas me contaram que na verdade, aquele apartamento tinha sido alugado de uma pessoa amiga lá de Guarujá cujo pai (e proprietário do apartamento) havia falecido há menos de um mês. Nessa hora, eu quase enfartei. Briguei com elas, fiquei puto da vida.
-Como que vocês me deixam aqui sozinho? Ainda mais quando eu digo que estou escutando coisas?
Elas tentaram se defender, mas não tinham perdão. Falei que era uma sacanagem comigo, que estava ali sem enxergar e sofrendo. Confesso que aumentei a dose de indignação para evitar que ficassem me enganando em outras coisas que pudessem vir a acontecer. Mais tarde, acabamos rindo muito da situação; apesar de ter ficado para sempre a incógnita: aqueles barulhos foram ou não visitas do ex-proprietário?.
Como naquele dia mesmo teríamos que irão consultório do Dr. Suzuki, fizemos as malas, pois dependendo do que ele dissesse sobre continuar ou não em São Paulo,naquele apartamento eu não dormiria mais - nem que chovessem canivetes.
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Fidel com a dele e eu com a minha.
Non-FictionUma Historia Real, passada nos anos 1980. Imagine, perder a visão aos 22 anos e ficar condenado a cegueira eterna. O que você faria? No cenário, as lindas praias de Guarujá e Miami, apimentadas com um pouquinho de Guerra Fria. Um jovem estudante de...
