Era madrugada de domingo para segunda-feira dia dois de julho, dia da primeira consulta no Hospital Bascom Palmer. Como de costume naquelas noites, eu estava acordado. No quarto, que tinha duas camas de casal, eu ficara em uma e minhas duas fiéis escudeiras dividiam a outra. Assim, eu podia me mexer à vontade sem me preocupar em acordá-las.
Algumas vezes eu dividia meu tempo com o walkman que eu havia levado comigo. Com os fones de ouvido colocados, eu ficava procurando no dial, tanto na AM quanto na FM, alguma novidade que me chamasse a atenção. Quando encontrava alguma música legal, eu escutava, se eu não achasse nada do meu gosto, mudava para AM. Nas AM, a maioria eram rádios de notícias, tanto em inglês como em espanhol e havia até mesmo uma estação em um francês esquisito. Mais tarde vim a saber que se tratava do créole, idioma usado pelos haitianos. Entre as emissoras locais que tinham um som forte e potente, às vezes o dial captava alguns sinais mais fracos. Tentando escutar alguma coisa sobre a Fórmula-1, ou sobre o Brasil, fiquei escutando um noticiário de uma rádio cubana. O sinal às vezes ficava normal e depois ia diminuindo, diminuindo até quase sumir e ficava forte de novo. O meu espanhol era péssimo, mas eu conseguia entender bastante coisa. O pior é que quando a notícia me interessava, o som enfraquecia e eu não entendia mais nada. Algo parecido com a famosa Lei de Murphy.
A rádio Rebelde de La Habana Cuba era a que eu ouvia por mais tempo. Era uma oportunidade rara ter contato com notícias diretas de Cuba, país que estava sob uma ditadura comunista há mais de vinte e cinco anos.
Eu, que nasci em sessenta e um e vivi praticamente minha vida inteira sob um regime autoritário militar de direita, queria ouvir direto da fonte as notícias do outro lado, sem intermediários. Era uma época pregada de guerras, conflitos internos e movimentos de guerrilha em alguns países da América Central e do Sul. O governo de Cuba exercia um papel importante nesse contexto. Era uma tentativa de exportar para outros povos a Revolução Cubana.
Na Nicarágua o exército sandino-comunista havia triunfado com os irmãos Ortega e a bola da vez era El Salvador. Por sua vez, o governo norte-americano apoiava quem tentava derrubar os Sandinistas do governo. A interferência norte-americana era oficial, com ajuda econômica e armamentista.
Essas eram as notícias que dominavam os programas de rádio, tanto em Cuba como nas rádios de Miami. Era curioso escutar a mesma notícia nas duas versões; da ultra-direita e a da mais pura esquerda. Nas rádios de Miami que eram anticastristas, diziam:
"As forças armadas salvadorenhas foram atacadas por guerrilheiros comunistas na cidade tal, venceram o combate e causaram a baixa de mais de vinte guerrilheiros comunistas a serviço do ditador cubano Fidel Castro e da União Soviética." Na versão das rádios cubanas, o texto sofria uma nova versão: "o exército salvadorenho invadiu a aldeia tal e assassinou uma dezena de civis entre eles mulheres, crianças e idosos. O governo de El Salvador recebe ordens diretas da Casa Branca para eliminar todas as forças opositoras ao governo militar antidemocrático daquele país".
Desliguei o rádio. Entre tantas revoluções, eu estava ali, vivendo a minha própria revolução.Até dois meses atrás, eu jamais imaginaria que minha vida passaria por mudanças tão radicais. O perfil que eu tinha há dois meses atrás não tinha quase nada a ver com o meu perfil de agora. O jovem de vinte e dois anos, estudante de arquitetura e pequeno empresário, que tinha toda uma vida pela frente e um futuro promissor, deu lugar a um jovem de vinte e dois anos, que ficara cego, não seria mais arquiteto, nem desenharia e criaria as estampas de sua empresa de silk screen, e cuja vida seria vivida no escuro, e cujo futuro seria uma incógnita total.
Nessa hora me lembrei daqueles dois cientistas da série de TV "O túnel do tempo", Tony Newman e Douglas Philips. Na abertura dos episódios, eles ficavam em queda livre numa espécie de buraco sem fundo, gritando e caindo, sem poder controlar para onde iriam e no final caíam onde a sorte lhes tocasse. Assim era aquele meu momento, aquela fase que eu estava vivendo.
Uma fase de radicais mudanças, uma fase de revoluções.
Minutos antes, eu havia escutado um trecho de um discurso de Fidel Castro, no qual ele comemorava o vigésimo quinto aniversário da revolução cubana. Dava ênfase às vitórias e conquistas e à luta interminável para mantê-la, às várias batalhas realizadas e às muitas que ainda viriam.Um trecho que me marcou muito foi quando ele pediu:
-Compañeros, tenemos que hacer mucho, mas de lo que ya hemos hecho. El enemigo Yankee está a punto de invadir nuestra pátria. Así como lo hizierón en Grenada, hace unos ocho meses. Tenemos que estar preparados para esa invasión cuando ella venga a ocurir. Compañeros tenemos que construir mas trincheras y nuestras trincheras serán las tumbas de los invasores Yankees.
No silencio e na escuridão da noite e dos meus olhos, e à poucas horas de mais uma batalha pessoal, uma batalha que seria com certeza a batalha principal nessa minha revolução, e revolução por revolução, pensei:
-Que fique o Fidel com a dele e eu com a minha!
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Fidel com a dele e eu com a minha.
No FicciónUma Historia Real, passada nos anos 1980. Imagine, perder a visão aos 22 anos e ficar condenado a cegueira eterna. O que você faria? No cenário, as lindas praias de Guarujá e Miami, apimentadas com um pouquinho de Guerra Fria. Um jovem estudante de...
