O Sinal

52 0 0
                                        


Aquele fim de tarde ainda parecia mais um dia de verão, apesar de estarmos no outono, na última semana de março. O verão havia terminado uma semana antes e até aquele momento eu não sabia, mas aquele seria o meu último verão.

Fazia uns dez minutos que eu havia saído da faculdade de arquitetura (Faus – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos) e estava voltando para casa, ou melhor, estava mesmo pretendendo ir até a praia para jogar futebol antes que escurecesse.

Estava curtindo a bela paisagem que nunca mais saiu da minha retina, a praia, o mar e do outro lado do canal, os morros verdes e lindos da ilha de Santo Amaro e a seus pés a Fortaleza da Barra Grande, uma construção do século XVI que contornava um trecho do encontro das montanhas com o mar.

O vento no rosto amainava o calor. Entre as sombras das arvores e dos prédios da orla da praia, o sol ainda me alcançava e eu seguia o meu caminho às vezes pensando no meu futebol e às vezes curtindo o visual, que mesmo sendo meu velho conhecido, sempre trazia uma boa energia. Ali, bem ao meu lado direito, os famosos Jardins de Santos. E as suas calçadas, que se transformavam em passarelas, desfilavam musas que mexiam com o meu imaginário. Assim, eu ia com o olhar buscando uma paquera, mesmo que fosse apenas uma troca de olhares.

E foi exatamente nesse momento que percebi uma luz, um pequeno flash luminoso. Achei estranho, fiquei na dúvida, será que foi o reflexo do sol no espelho retrovisor da minha moto? Será que foi...?

Gelei. Nessa fração de segundo lembrei-me de um dos sintomas mais comuns quando há um problema na retina: o flash, algo parecido a fogos de artifício. Não, não podia ser. Minha visão estava tão nítida, tão normal. Deve ter sido outra coisa, pensei comigo, apesar de não estar totalmente convencido disso.

Fiz alguns testes, e sem poder chegar a uma conclusão, fiquei a todo o momento olhando em direções opostas até que pouco tempo depois, mais um flash. Respirei fundo, meus pensamentos dispararam, cruzaram e se esbarraram. Puta que pariu. Pensei. Não pode ser!

Parei no pedágio, paguei e fui até o pontão das balsas para embarcar antes dos outros carros. Fiquei ali isolado do mundo, sem saber no que pensar ou o que fazer. Assim que os carros saíram da balsa que acabara de chegar, entrei rapidamente e fui até a frente, bem na ponta da embarcação. Desci da moto e coloquei-a no descanso. Sentei-me na proteção lateral da balsa de costas para os carros e fiquei olhando para o canal. Agora, eu estava frente a frente com o Sol, seus raios prateavam as escuras águas das praias santistas. Fiquei ali, absorvido com os meus pensamentos. A travessia que normalmente durava cinco minutos parecera uma eternidade. Então decidi: - Vou para casa descansar, afinal pode não ser nada. Mas era...

Quando a balsa atracou deixei que todos os carros, motos e bicicletas saíssem primeiro. Fui vencendo aqueles quatro quilômetros até minha casa, devagar e pensativamente. Guardei a moto na garagem e subi para o apartamento. Normalmente, sempre passava pela casa do meu tio Tino que ficava no alto da escada, mas quando percebi já estava entrando no meu quarto. Liguei o som, coloquei uma fita do "Para-lamas" e me joguei na cama. Fui perdendo a noção do tempo. Olhando pela janela via o céu azul ganhar tons alaranjados, depois cinza, depois adormeci. Quando acordei, passava das vinte e duas horas. Tomei um banho, me vestir e passei pela sala, onde meus pais e minha avó assistiam novela. Troquei algumas palavras com eles e me despedir, dizendo que iria até o Terraço, um bar que a galera frequentava.

Quando desci, mal cheguei à calçada, um carro buzinou e uma voz de mulher me chamou. Era a Sheyla, uma paulistana havia conhecido no carnaval de 1983. Mal acabamos de nos cumprimentar, ela, com um sorriso lindo e malicioso me disse:

- E ai, vamos acabar o que começamos no carnaval passado?

Entrei no carro e fomos para o apartamento dela. Cheguei em casa quatro e pouco da manhã.

Por volta das oito acordei com um barulho na cozinha. Levantei e fui atrás de um café preto, cujo aroma invadira meu quarto encontrei meus pais desjejuando e contei a eles o que estava sentindo no olho e disse que iria ligar para o meu médico oftalmologista que já me acompanhava desde que eu tinha nove anos de idade.

Foi nessa idade que fui levado para São Paulo na clínica do Dr. Sérgio Lustosa Cunha, um médico Top 10 na especialidade de tratamentos na retina. Nessa época, eu já havia perdido totalmente a visão do olho esquerdo. Isso aconteceu após eu levar uma bolada no rosto, bem perto do olho, durante um inocente jogo de futebol na praia, em frente ao prédio onde eu morava. Pouco depois, meu pai apareceu na mureta da praia e me chamou dizendo que estava na hora do almoço. Fui pra casa, tomei banho e quando cheguei à cozinha, senti que o meu olho esquerdo estava ficando preto. Fui ficando sem visão de baixo para cima e em poucos minutos estava cego. Falei para minha mãe, mas ela pensou que eu estava brincando e depois meu pai também achou o mesmo. Como eu era e tinha fama de ser um tremendo Tio Patinhas, meu pai então, fez um teste, pedindo que eu fechasse o olho direito e deixasse só o esquerdo aberto. Depois ele pegou uma nota de dinheiro e pediu para eu dizer o valor. Ao invés de falar que não estava mesmo enxergando, chutei que eram dez cruzeiros. E acertei. Aí, caí em descrédito total. Assim, o dia passou e só no dia seguinte eles acreditaram e minha mãe me levou ao médico. Quando chegamos para a consulta com o Dr. Luiz ele viu que era um caso para um especialista e nos indicou um médico em Santos.

Não me recordo nem ninguém, o nome do médico. Mas lembro-me que o consultório dele ficava nos arredores da Santa Casa de santos. Na consulta, foi diagnosticado descolamento total da retina e esse médico recomendou que me levassem para São Paulo urgentemente e deu o nome do Dr. Sergio Cunha. Dias depois, já sob dos cuidados do Dr. Sérgio, foi feita a opção por uma cirurgia já que havia a possibilidade de recuperação devido à minha pouca idade. Infelizmente não deu certo. A técnica cirúrgica que havia nessa época, 1971, não era avançada o suficiente para salvar a visão do meu olho esquerdo. E foi assim, a partir desse contato que passei a frequentar anualmente a clínica do Dr. Sérgio, com a finalidade de fazer exames de fundo de olho de caráter preventivo na retina direita. Os anos passaram, nunca apareceu nenhum problema e fui levando uma vida absolutamente normal apesar de enxergar com apenas um olho. Tive uma vida escolar absolutamente normal, brincava de tudo, subia nos morros, nadava e tudo o que uma criança saudável podia fazer, eu fazia.

E agora,... Anos depois, estava com uma sensação de que a história estava se repetindo. Liguei para a clínica do Dr. Sérgio e pedi para marcarem uma consulta com urgência e expliquei os sintomas que eu estava sentindo. Era uma quinta-feira e a responsável conseguiu um encaixe apenas para a terça-feira seguinte, dia três de abril.

Tentei não causar pânico nas pessoas da minha família e disse a eles que poderia não ser nada grave, que eu só queria ter certeza de que estava tudo bem e daí a minha pressa em marcar a consulta.

Fidel com a dele e eu com a minha.Where stories live. Discover now